domingo, 20 de dezembro de 2020

Ser chamado



O filme "The Way Ahead" de Carol Reed começa com o recrutamento de uns quantos civis para o exército. A 2ª Guerra Mundial chamará por eles. Veremos momentos de treino, o conflito nunca mais chega como em Buzatti e Zurlini, mas Reed parece preferir filmar a amizade entre os homens, a forma como superiores passam a amigos, as despedidas no cais, as mulheres em espera, o patrão, o subserviente. O gozo, depois o medo, depois o orgulho no exército, numa família à qual passam a pertencer. Exagero. Fiquei um tanto à margem do filme, talvez porque nunca fui chamado a cumprir serviço militar. Quando chegou a altura estava na universidade e mais tarde passei à reserva. Penso nesse corte na vida que implica um chamamento. Tive chamamentos internos, suaves - o amor, o mestre, de certa maneira, a espiritualidade chama-me de tempos em tempos. Mas nunca de forma tão brutal nem tão cruel como quando nem sabem o teu nome e chamam por ti. Partem a tua vida ao meio e pegam-te por um braço e papéis (há sempre papéis a comprovar a justeza daquilo) e dizem-te "vem por aqui". E tu vais, que remédio, estavas entretido a planear a vida, a conceber sonhos, a arrancar musgo dos muros dos obstáculos e subitamente és chamado à maquina de matar. Ser chamado à guerra é, de repente, acordares e passares a ter de lutar pela vida. Como quando se tem fome, quando quando a fome, implacável, chama por ti e pela tua vida. Nunca passei fome, tenho muita sorte. Limito-me a imaginar, a falar do que não sei. Mas, na verdade, nunca sabemos de nada. Continuamos, imbecis, sempre a falar e a escrever como tagarelas da ignorância. Ter fome também é ser chamado a lutar pela vida. Estás metido no meio das tuas ilusões, dos teus cósmicos planos e, subitamente, aparece sem avisar esse buraco interior e tens de largar tudo o que estás a fazer - planos, moral, boas intenções - e lutas pela sobrevivência. A tua, a dos teus. Afortunados são aqueles que não são interrompidos, que seguem o caminho, que roncam do nariz e não do estômago. Ser chamado pela nossa fome, imagino, deve ser o mais devastador dos chamamentos. 

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