terça-feira, 17 de novembro de 2020

Pastoralia



Rogério Casanova diz no prefácio à colectânea de contos "Pastoralia" que o mundo de George Saunders é aquele em que "alguém é convidado a desempenhar um papel cuja única utilidade é evitar que outra pessoa desempenhe um papel cuja única utilidade é reagir ao papel inútil previamente desempenhado, etc., etc.," Este mise-en-abyme espelha bem esta espécie de canibalização distópica em que já não sabemos bem qual o espaço do altruísmo, mas também o do canalhice. O homem com peso na consciência é já um artefacto das cavernas. Ou nem tanto, pois Saunders carrega a sua escrita de um humor negro, de uma observação implacável da superficialidade, da decadência do quotidiano pelo marketing e pelo televisivo, mas, no final de contas, há uma resta de humanidade que sobra das personagens. Uma possibilidade de amor, um continuar a ajudar quem nos caga nas papas de aveia, uma hipótese de futuro além de mostrar a pila num buraco suburbano. E, ao contrário, o pensamento pode conter caminhos autónomos e ferozes que nos apartam da realidade. Como leitor senti-me sempre entre o sórdido e o puro, entre o riso irónico e a empatia que apenas temos para com as personagens que amamos. Aquelas que aceitam toda a merda com um sorriso nos lábios. Que antes de se desfazerem, procuram indicar a saída aos que cá ficam. 

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