Tenho alguns amigos e outros conhecidos da área do cinema que muito estimo e respeito que crêem a eminente alteração do cinema como “oportunidade histórica” em prol da “diversidade” do cinema português. Claro que sabemos bem – e não há mal nisso – que, neste caso, a palavra diversidade é um valor que esconde a verdadeira razão das escolhas de cada um: neste caso uma alteração que lhes permitirá arranjar mais trabalho, obter mais rendimentos. Nada contra, é legítimo, mas é só para que se perceba. O que creio que estes meus amigos deviam ter consciência é que a tarefa de fazer um cinema comercial de qualidade (como sei que muitos ambicionam) é uma ambição que implica não compreender suficientemente a lógica de funcionamento dos canais de televisão e serviços de streaming que subjazem a estes investimentos. Basta abrir ao acaso um canal português a meio de uma tarde ou noite – com os seus talk shows anódinos, telenovelas intermináveis, comentários de futebol sem nada para comentar, música pimba, séries de TV que são telenovelas com outros nomes – para perceber que, desde o início da televisão (e agora plataformas como a Netflix, espécie de televisão 2.0), estamos no domínio da indústria dos narcóticos. Por isso, não é de estranhar que o cinema, que sempre foi, mesmo quando para um suposto “grande público”, uma arte do despertar (do espírito, do corpo, da relação com o outro), se tenha insurgido contra o modelo, o formato, a narcolepsia televisiva. O cinema cabe na TV e afins, mas encolhido, espremido de sumo, enlatado. E quando se fala “do que o público gosta”, falamos disso: de um processo cada vez mais vasto de amortecimento do espírito. Claro que, propositadamente, hiperbolizo e extremo o panorama. Sabemos como a Netflix, a HBO ou outras plataformas têm pontualmente produzido filmes/séries de alguma qualidade. Mas isso não deve afastar da nossa mente o panorama geral e é do panorama geral que temos de criar distância. Porque se pensarmos em tréguas bem-intencionadas com essas plataformas, com esse mesmo grande público que, como dizia o João Botelho “confunde as piadas com os filmes” ou a “narrativa clássica e causal com o cinema”, então… quando acordarmos só haverá panorama geral. E desse panorama geral fazem parte ideias tão horríveis e díspares como “Manoel de Oliveira é um cineasta entediante”; “um filme a preto e branco… que horror”; “mas não se passa nada neste filme”. Esta alteração da lei o que permite é, tão só, uma crescente (e perdoem-me o neologismo) “televicização do cinema”. Quando o que deveríamos todos procurar é o oposto: uma progressiva cinematização da televisão e do audiovisual. Porque esta luta não é uma guerra de conteúdos, nem de visões do mundo. É uma luta entre o adormecer e o acordar. E quem quer dormir mais ainda?
G'anda texto, man!
ResponderEliminar"televiciação" já é uma realidade mui Cro-Magnon... :(
Obrigado ! Espero que esteja tudo a correr bem nestes tempos de recolhimento. Beijinhos !
ResponderEliminar