terça-feira, 21 de maio de 2019

"Understory" de Margarida Cardoso


Os fãs do cineasta alemão Werner Herzog sabem bem esta graça: a de que qualquer tópico ou conjunto de imagens, se narrada pelo inglês agressivo e marcado do autor, se podem tornar automaticamente interessantes. Não vale a pena chegar a tanto com a voz off de Margarida Cardoso nesta viagem pela travessia do cacau ao chocolate, mas o certo é que da serenidade e doçura do timbre da sua voz retiramos muitas coisas belas: dela desprende-se uma ideia de verdadeira familiaridade com o espaço africano (basta consultar vários dos seus filmes anteriores) como se esse passado fílmico habitasse, fosse o understory de Understory; a sua voz é também a bússola de uma viagem que é mais um fluir e uma fruição, onde o tempo vai apaziguando. Por exemplo, ao descer o rio Purus, no segmento do filme passado na Amazónia, Margarida diz: “da lancha voadora que se dirigia para este, podia ver pela primeira vez a vegetação cerrada da floresta amazónica. Talvez por já estarmos muito perto da noite tudo me parecia indistinto e misterioso. Imaginei como seria embrenhar-me na floresta não hoje, mas no tempo em que se sabia muito pouco sobre tudo e em que a terra era quadrada e plana. Imaginei os caçadores de plantas, naturalistas, botânicos e o seu espanto ao perceberem a espantosa diversidade no novo mundo. Um mundo que a seu olhos era virgem e complexo, criado unicamente pelas mutações caprichosas da natureza.”
Esta passagem ilustra também esta função de um voz off que funciona como manto de honestidade do projecto, um guia de uma curiosidade que transcende em muito aquilo que poderia ser o mais evidente num documentário de consciência social acerca da produção e comércio do cacau. Margarida Cardoso não se escusa a fazer o raccord entre o escravo de outrora e o escravo de hoje, os novos-empresários-pobres-para-sempre que apanham o cacau e nem sequer nunca se aproximaram de um aeroporto e suas gifts shops onde o chocolate será vendido a preços que nada têm a ver com o que recebem. Fá-lo, dizia, e de forma engenhosa, colocando lado a lado, em split screen, filmes coloniais portugueses de finais dos anos 20 e anos 30 e imagens de hoje. A história que se encolhe, que rima de forma empobrecedora. Mas depois há tudo o resto em Understory, um conjunto de coisas “indistintas e misteriosas” que a câmara de Margarida Cardoso intui terem tanta ou mais importância para compreender toda essa dinâmica da relação comercial em torno de um fruto colhido em São Tomé e em outras zonas delimitadas de África e América do Sul. Por debaixo da história estão as formigas em trocas mutualistas com outros bichos em busca de um pouco de açúcar do cacau, o cacaueiro que dá centenas de milhares de flores e só 0.1% de frutos, mas também um cão prestes a adormecer, um pássaro a debicar à chuva. É este olho atento aos detalhes que permite agigantar o espaço e o tema “oficial” do filme. Por extensão o espectador devém viajante numa travessia que apetece que não tenha fim. Um espectador que devém intemporal, curioso, em fusão com o cinema e com a abertura de espírito genuína e bela de Understory.

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