sábado, 11 de maio de 2019

"Campo" de Tiago Hespanha


As ironias são mui belas. O melhor filme que vi na competição nacional até agora começa, depois da névoa, das árvores dormindo, dos planos William Turner, com a célebre frase: “e no início era o caos”. Ironia pois Tiago Hespanha está muito longe da noção de caos, procurando através de um dispositivo rigoroso, de pontual voz off, pausada e reflexiva, discorrer sobre as várias noções da palavra campo, enquanto abre os espaços da base militar de Alcochete. Aliás, se prolongarmos a ironia, podia mesmo dizer – trazendo aqui o outro filme nacional de longa metragem que mais me chamou a atenção nesta primeira metade do festival, A Casa e os Cães (2019) de Madalena Fragoso e Margarida Meneses – que o que falta a cada um dos filmes, sobra ao outro. Isto é, que a Campo falta-lhe ser um nadinha menos “casa” (casa enquanto estrutura marcada e, por vezes, um tanto rígida) e que a Casa e os Cães precisava ser um pouco menos “campo” (campo enquanto espaço aberto, sem forma estanque). Dito isto, a obra de Tiago Hespanha cativa pela inteligência da sua abordagem.
Entre os muitos pontos interessantes pensei em Campo como a filmagem de um documentário sobre uma ficção – presente sobretudo nos reenactments dos exercícios militares – como se assistíssemos a um Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997) sem inimigos visíveis, uma battle in the stars (é esse o nome da música que o rapaz, vizinho do campo militar, compõe ao piano) transformada em fogo de artifício de fim de ano, uma cartografia da galáxia ensaiada nas matas dos arredores de Lisboa, com reféns-stand in e com alvos de brincar. A esta “guerra estelar” não faltam mesmo a destruição de portas, a queda “mágica” de árvores (são os planos que elidem a queda ora que filmam a queda sem vermos o corte), o mapeamento de navezinhas naturais como os pássaros com os seus pios de contacto ou as abelhas que ameaçam mecanizar-se. As referências ao mito de Protágoras e ao “homem sem qualidades” (além do fogo), os planos intemporais e ancestrais da natureza ajudam a compor o argumento de que a acção militar (com os seus sistemas de autoridade, as suas regras “vazias”) faz parte de um ímpeto da natureza humana que vai transformando mitos e ficções (o Grande Inimigo como uma ficção) numa história oficial. No fundo, constituindo campos delimitados de batalha e conquista da terra. Basta pensar na leitura de Agamben sobre a noção de campo, e no modelo carcerário das cidades contemporâneas. Claro que em Portugal, um país periférico e de certa forma subjugado, uma investigação wisemaniana acerca dos espaços e rituais da “instituição militar” – como é, em alguns momentos, o filme de Tiago Hespanha – não deixa de ganhar um cunho muito irónico. São as tais ironias belas.

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