A acreditar no site imdb, a comédia Every Which Way but Loose (Um Indomável Rebelde, 1978) de James Fargo, na qual Clint Eastwood tem como parceiro de aventura o orangotango Clyde, foi o maior hit comercial da sua carreira. O argumento escrito por Jeremy Joe Kronsberg foi enviado a Eastwood com a intenção deste o passar a Burt Reynolds, especialista esse sim, em comédias. Contudo, contra todas as expectativas, Eastwood gostou do argumento e pôs em pânico aqueles que dependiam da sua figura icónica de macho – os westerns, Dirty Harry, tudo já tinha “marcado” o seu estilo, isto apesar da brisa de filmes mais leves, românticos, cómicos, já ter passado antes pela sua carreira.
Percebe-se o sucesso comercial e o pânico: o filme foi bastante mal recebido pela crítica, supostamente, visto como uma tentativa de Eastwood ir ao limite do ridículo; uma sucessão de cenas de pancadaria e onde, além de meia dúzia de personagens simpáticas e caricaturais, nada de muito relevante se passava. Há uma história de amor, que depois nem vai funcionar (até porque o amor genuíno aqui é interespécies), uma viagem em busca desse romance e pouco mais. Clint é Philo Beddoe, um lutador amador um bocado pacóvio, que ganhou o seu orangotango, Clyde, numa luta, vivendo os dois um dia de cada vez. A rodeá-lo o seu melhor amigo humano, Orville (Geoffrey Lewis) e a sua namorada, vendedora de melões (a piada existe e é bem má), e a mãe deste, uma velha do demo que quando não está a tentar tirar, pela milionésima vez, a sua carta de condução varre tudo e todos a insultos e tiros de caçadeira [Ruth Gordon, que venceu um Óscar por Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968)].
O sucesso, dizia, terá vindo do facto de estarem na moda os filmes de pancadaria: as cenas são mais do que muitas, seja com gangs de motards pançudos e peludos, sejam com polícias que ainda devem menos à inteligência. Assim, terá contribuído para a boa bilheteira o facto de Every Which Way but Loose ser também um filme do subgénero ring fighter, não faltando aqui uma bela cena de murraças entre peças de carne de vaca penduradas no matadouro.
Se tudo isto parece relativamente ingénuo e desinteressante – tornando ainda mais incompreensível que um cineasta como Harmony Korine, numa entrevista, tivesse nomeado o filme de Fargo como o seu preferido de todos os tempos – depois temos pequenos momentos que nos deixam a magicar a razão de Clint também ter sido enfeitiçado pelo argumento ao ponto de querer dar corpo ao seu protagonista, Philo Beddoe. Lá para meio do filme há um momento que me comove às lágrimas. Philo percebe que o seu amigo precisa de espaço e tempo a sós com a namorada. Temos então uma sequência de montagem em que aquele leva o orangotango Clyde pela mão e vão dar um giro pelos bares de zona. Convém dizer que os quatro andavam em viagem porque Philo queria perceber porque é que a cantora de country Lynn Halsey-Taylor (interpretado pela mulher de Clint de então, Sondra Locke), por quem se tinha apaixonado, tinha desaparecido misteriosamente. Mas volto à sequência de montagem: Clint e Clyde (um, nome real, o outro nome de personagem) é a dupla que vai beber uns copos juntos, entrar e sair de bares de strip.
Depois vem o momento incrível que gostava de destacar. Clint chega com Clyde ao hotel, meio embriagado, encontrando o amigo e a namorada na cama a dormir. Acorda-os dizendo-lhes que aquilo que não está certo. E o espectador pensa que Clint, pelo efeito do álcool, está ressentido e inveja os amantes nos braços um do outro, uma vez que foi abandonado pela rapariga de quem gostava. Aí, Orville, pergunta-lhe: mas o que é que não está certo? E Clint responde: Vocês têm-se um ao outro. Eu quase que tive alguém. E não está certo. Orville e a namorada continuam sem saber do que fala ele. Até que ele responde de forma algo ainda enigmática que está a falar do Clyde. Fargo corta logo para Clint e o casal ainda meio ensonado na carrinha, com Clyde na parte detrás. A meio da noite Clint decidiu que Clyde era o único que não tinha namorada e que, portanto, iriam tentar entrar a meio da noite num zoo para que o orangotango pudesse acasalar com uma orangotanga.
Se tudo isto é excessivo e um tanto ridículo, digam-me se não há nesta atitude, nesta cena, aquilo que conhecemos do herói eastwoodiano? Daquele que, em silêncio, na sombra, se sacrificará por aquele que é mais fraco, desprotegido, inocente. Mais tarde, a fechar, teremos outra cena destas e outra ainda em que Clint descobre que sendo ele todo corpo, a sua mente é tida pelo “mundo real” como demasiado ingénua, demasiado enganável. Trata-se de uma personagem algo inversa ao protagonista de Monkey Shines (Atracção Diabólica, 1988) de George A. Romero – o filme que compõe o raccord primata na crónica deste mês: o atleta que devém tetraplégico Allan Mann (Jason Beghe). Enquanto que a personagem de Clint derruba qualquer homem mas cai facilmente em situações ardilosas, já Allan perdeu a habilidade corporal, restando-lhe a voz de comando e o seu cérebro para gerir a relação ciumenta e obsessiva com a sua macaca.
E se se brincava com a aliteração entre o par Clint e Clyde, a mesma coisa faz Romero com Allan e Ella (o nome da macaca que o vai ajudar nas pequenas tarefas depois do seu acidente). No filme de Romero trabalha-se explicitamente a fusão do par. O amigo cientista de Allan, Geoffrey, injecta a macaca com raspas de cérebro humano e, em consequência, o animal torna-se mais homem, não sem que o homem se torne também mais animal. Esse é, aliás, o terreno por excelência de George Romero, no qual os zombies são um espelho da humanidade ainda por apodrecer. Trata-se pois de uma relação amorosa em que a inteligência de um contamina o instinto do outro e vice-versa.
Uma das coisas interessantes de Every Which Way but Loose é precisamente o facto da presença do animal não ser necessariamente nem alvo de ameaças (em nenhum momento algo de mal está prestes a acontecer a Clyde) nem fonte das mesmas, como acontece com o filme de Romero. O orangotango Clyde é o verdadeiro buddy de Clint – eles perseguem mauzões, bebem cervejolas, ajudam-se na queda – tão bonito o momento em que no final de uma perseguição wacky races a um par de motards indecentes, o macaco vem ajudar Clint a erguer-se no meio do pó. Como “gémeos símiameses”, Clint, em toda a sua falta de densidade intelectual e simplicidade, tem sobretudo no animal o seu duplo.
Já no filme de Romero essa duplicidade é bem mais perversa. Como no filme de James Fargo, estamos perante um “herói” masculino rodeado de figuras femininas que o abandonam ou que abusam da sua confiança e presença. Resta a Allan, uma personagem presa na sua “cabana” [para repegar o tema do isolamento em Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968)] devir um tanto máquina (o seu corpo é controlado por uma), assim como a macaca devirá humana. E é porque é a condição animal, que virá mimetizar a condição humana, que a história de buddies contada em Every Which Way but Loose dará lugar a um romance obsessivo, um tanto hitchcockiano no mundo romeriano.
E é por causa desta dupla forma de semelhança “símiamesa” que no primeiro caso estamos perante a comédia e no segundo perante o horror. Como quem permite pensar que, quando o homem tenta ser mais animal perde em “civilidade” e ganha em “apaziguamento”. Já quando é o animal a humanizar-se a ameaça do demónio do instinto organiza-se de uma forma que, ainda hoje, não deixamos de ver como intolerável. Ou talvez seja apenas o medo e o poder.
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