Numa das cenas mais enérgicas e divertidas do filme vencedor do Urso de Ouro e Prémio da Crítica em Berlim, Yoav, jovem israelita evadido do seu país e vindo para França, tem fome. Segue uma rapariga até um bar e começa a petiscar uns snacks que lá estavam a um canto. Eis senão quando, começa o clássico “Pump Up The Jam” dos Technotronic e toda a gente fica louca. O plano estático e geral de Nadav Lapid invade-se de jovens a dançar como se não houvesse amanhã. Sempre focados, temos agora rostos divertidos, pedaços de corpos, mãos em sítios marotos, traseiros ondeantes. Yoav consegue penetrar naquele mar de gente e, de gatas, vai caçar mais uns petiscos. Uns instantes depois sobe ao balcão do bar e começa a dançar efusivamente com um grande pão que, como se pode ver na imagem abaixo, vai partilhar, eroticamente, com uma jovem. Ela quer aquele pão, pois ele é um pão. Ele quer as duas coisas: poder comer literalmente o pão, mas também poder fazer dele um instrumento de performance social.
Se foco nesta cena particular é porque esta dualidade – entre o político e o performativo – é a estratégia constante de Synonymes (Sinónimos, 2019) para poder bater, insistentemente, à porta dos prémios (vide cena final), do panteão de cineastas “inovadores”, conscientes da eficácia da sua arte para a abordagem de “causas relevantes”. Os argumentos principais que li para justificar o poder do filme prendem-se com o facto de Yoav representar não o tipo excluído, menorizado, que procura uma “aberta” no mundo cosmopolita e burguês da Paris dos sonhos europeus, mas sim alguém cuja “cólera ultrapassa a pobreza”, alguém que não se revê na ideia de fronteira, que ora rechaça ora pede de volta o seu passado, que corre, dança, saltita, que rejeita a indoutrinação de regras gaulesas da liberdade e tolerância, que não procura a construção laboral ou a distinção entre o artista e o perverso.
Esta nova reivindicação “existencial”, diz ainda Stéphane Delorme no editorial dos Cahiers de Março, vem perturbar a própria noção instalada do cinema francês, com o seu “manto laranja” (e do laranja ao “gilet jaune” vai um passinho). Casaco que sempre acompanhará o herói e que, ao mesmo tempo que exterioriza uma forma de integração, interiormente mantém uma certa “nudez” (as camisas que o amigo francês lhe deu serviram apenas para tapar um buraco no tecto do apartamento onde vai habitar).
Independente de poder considerar justa esta interpretação, ela padece, a meu ver, do problema de fechar os olhos a duas questões. A primeira é a de saber se o filme de Lapid é, realmente, uma alternativa a qualquer coisa. Isto é, se toda a deambulação citadina, toda a raiva contestatária, toda a ridicularização de um status quo do sistema, não são peças um tanto já gastas, já filmadas, uma forma acolchoada de cinematizar o político. O político que parte do jovem modelo e bem parecido, dos discursos pseudo-poéticos, das citações e referências cómodas, das tiradas bacocas (“casar é mais rápido do que foder”), dos planos sugestivos e simbólicos.
A segunda questão é mais interessante, porque mais cinematográfica. Podia pensar-se que a personagem de Yoav seria o centro de Synonymes com as tais novas reivindicações. Contudo, a personagem aparece no filme de Lapid como instrumento de sedução. Por um lado, a sedução política, as palavras do dicionário francês encontradas para serem mandadas à cara do espectador. Como naquele plano frontal em que Lapid “usa” Yoav para dizer-nos, in our face, o seguinte: “Vim para França para fugir de Israel. Para fugir daquele estado mau, obsceno, ignorante, idiota, sórdido, fétido, rude, abominável, odioso, lamentável, repugnante, detestável, cheio de maldade, cheio de ruindade”… No final do monólogo temos um plano lateral do seu amigo escritor, como quem diz: isto é um diálogo. Só que não é. É uma velha denúncia com novas palavras.
Por outro lado, Yoav é um instrumento de sedução estética: todos as suas palavras, gestos dançados, corridas, são incorporadas nos planos como mini-atracções. Ele deve provocar e o espectador sentir-se provocado: um dedo no cu, um statement no metro, um statement na backstage de um concerto de música clássica, uma queda nua e teatral numa casa grande e abandonada, uma frase grandiosa. Tudo deve parecer diferente. Tudo tem um sabor postiço não tanto para construir a tal “alternativa existencial”, como para distrair da seriedade da mensagem política.
Fico com a sensação que Lapid viu na sua personagem um novo Belmondo dos tempos modernos, e viu em si próprio um novo Godard politizado e romantizado. Contudo, a grande diferença talvez se possa encontrar num vulgar dicionário de sinónimos: seduzir não é o mesmo que provocar. E Godard era (é) o grande provocador. Lapid, por enquanto, só consegue seduzir.
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