Nesta imagem quase que não dá para reparar. Em LITTLE FOXES, a cena da morte do pai, um Herbert Marshall como não me lembro de o ver, decadente, pesado, com uma réstia de esperteza honesta numa família de raposas. Bette Davis finge que não quer a morte do marido, dá-lhe o remédio do coração à boca mas sabe bem que já não havia nada a fazer. William Wyler reserva dois planos individuais para a criada, Jessica Grayson, e em ambos podemos ler a aflição e tristeza verdadeiras. No derradeiro plano, quando quase já nada o fazia esperar, uma lágrima surge no canto de um dos seus olhos. Uma lágrima tímida, a balouçar, como se não se quisesse mostrar. Como o cinema me dá insónias, oh se dá.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
terça-feira, 28 de maio de 2019
Golpes de delicadeza
Expectativas. O sol vai nascer, o milho vai abrir. O universo expande-se, contrai-se, galáxias respiram no dorso do gato, na carteira vazia. O tempo adorna-se em seu silêncio, numa inquietude de grinalda. Um mar de gente com fome, uma planície de fome reclamando suaves prestações de espasmo. A estabilidade do dia reclamando espinhos, veludos, confirmações. Nomes e locais marcados em agendas, organização letal do fugaz. A flor espera, a pedra alcança. A cabeça da história com enxaquecas, o mundo atrasado, a frase expectante do seu termo. Vírgula arredondada, lápide gretada, o comum da vala minhoquenta. Rochas da sorte, escadas sem dispositivo de descida. Trago à baila uma conversa do tempo de Creta, um abraço imortal e a erosão da memória. Daqui a um minuto, daqui a uma pereira, nada. Riscar a agenda ao pôr do sol, cabelo de algas, um tolo a sorrir. Expectativas de uma luta, de um triunfo e pão com manteiga. Brindar o fim do dia com amores, licores, rancores multicolores. Selvagens da luta, uni-vos: é tempo de derrubar a civilização a golpes de delicadeza.
Naquele cenário cada vez mais típico, de pais e filhos à mesa, ou de um grupo de amigos, com cada um a olhar compulsivamente para o ecrã do seu smart phone lembro-me do velhinho princípio da "montagem interdita" de André Bazin: "quando o essencial de um evento é dependente de uma presença simultânea de dois ou maus factores de acção, a montagem é interdita". Há qualquer coisa ligada à preservação do espaço, do eco e da ambiguidade que se perde, e que converte as cenas de diálogo em gags falhados de um filme de Tati (digo falhados pois em Tati seria ora o telefone, ora o seu dono, os que não corresponderiam ao esperado pela denominada "modernidade tecnológica").
segunda-feira, 27 de maio de 2019
Há uns anos lembro-me de estar em casa do meu pai, com um amigo dele já na casa dos noventa anos. Ele estava de visita, ali na zona da Portela, junto ao aeroporto, e olhava pela janela, contemplando os prédios rectangulares, brancos e castanhos, construídos nos anos 70. A dada altura disse, elogiando as ditas construções: "isto é importante!". Para alguém que nasceu e passou parte da juventude ali, aquilo soava-me a manifesto exagero. Há pouco tempo, a ver o filme "Dom Roberto" de Ernesto de Sousa, Raul Solnado, espécie de Roberto Begnini português, utilizava a mesma expressão, com ênfase: "isto é muito importante!", referindo-se ao seu trabalho imaginário de guarda e à casa meio destruída em que habitava com a sua companheira. Automaticamente pensei na expressão do amigo do meu pai e de como esta podia afinal ser uma expressão de época. Mas também uma exteriorização de uma certa condição de humildade e reconhecimento. Muitas vezes as coisas não se tornam importantes só porque as nomeamos. Mas há excepções: a expressão "é importante" pode ser, de facto, importante. Sobretudo porque ela não se dirige tanto às coisas, e mais a uma dada forma de olhar em volta.
domingo, 26 de maio de 2019
Raccords do Algoritmo #14: Gémeos “símiameses”
A acreditar no site imdb, a comédia Every Which Way but Loose (Um Indomável Rebelde, 1978) de James Fargo, na qual Clint Eastwood tem como parceiro de aventura o orangotango Clyde, foi o maior hit comercial da sua carreira. O argumento escrito por Jeremy Joe Kronsberg foi enviado a Eastwood com a intenção deste o passar a Burt Reynolds, especialista esse sim, em comédias. Contudo, contra todas as expectativas, Eastwood gostou do argumento e pôs em pânico aqueles que dependiam da sua figura icónica de macho – os westerns, Dirty Harry, tudo já tinha “marcado” o seu estilo, isto apesar da brisa de filmes mais leves, românticos, cómicos, já ter passado antes pela sua carreira.
Percebe-se o sucesso comercial e o pânico: o filme foi bastante mal recebido pela crítica, supostamente, visto como uma tentativa de Eastwood ir ao limite do ridículo; uma sucessão de cenas de pancadaria e onde, além de meia dúzia de personagens simpáticas e caricaturais, nada de muito relevante se passava. Há uma história de amor, que depois nem vai funcionar (até porque o amor genuíno aqui é interespécies), uma viagem em busca desse romance e pouco mais. Clint é Philo Beddoe, um lutador amador um bocado pacóvio, que ganhou o seu orangotango, Clyde, numa luta, vivendo os dois um dia de cada vez. A rodeá-lo o seu melhor amigo humano, Orville (Geoffrey Lewis) e a sua namorada, vendedora de melões (a piada existe e é bem má), e a mãe deste, uma velha do demo que quando não está a tentar tirar, pela milionésima vez, a sua carta de condução varre tudo e todos a insultos e tiros de caçadeira [Ruth Gordon, que venceu um Óscar por Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968)].
O sucesso, dizia, terá vindo do facto de estarem na moda os filmes de pancadaria: as cenas são mais do que muitas, seja com gangs de motards pançudos e peludos, sejam com polícias que ainda devem menos à inteligência. Assim, terá contribuído para a boa bilheteira o facto de Every Which Way but Loose ser também um filme do subgénero ring fighter, não faltando aqui uma bela cena de murraças entre peças de carne de vaca penduradas no matadouro.
Se tudo isto parece relativamente ingénuo e desinteressante – tornando ainda mais incompreensível que um cineasta como Harmony Korine, numa entrevista, tivesse nomeado o filme de Fargo como o seu preferido de todos os tempos – depois temos pequenos momentos que nos deixam a magicar a razão de Clint também ter sido enfeitiçado pelo argumento ao ponto de querer dar corpo ao seu protagonista, Philo Beddoe. Lá para meio do filme há um momento que me comove às lágrimas. Philo percebe que o seu amigo precisa de espaço e tempo a sós com a namorada. Temos então uma sequência de montagem em que aquele leva o orangotango Clyde pela mão e vão dar um giro pelos bares de zona. Convém dizer que os quatro andavam em viagem porque Philo queria perceber porque é que a cantora de country Lynn Halsey-Taylor (interpretado pela mulher de Clint de então, Sondra Locke), por quem se tinha apaixonado, tinha desaparecido misteriosamente. Mas volto à sequência de montagem: Clint e Clyde (um, nome real, o outro nome de personagem) é a dupla que vai beber uns copos juntos, entrar e sair de bares de strip.
Depois vem o momento incrível que gostava de destacar. Clint chega com Clyde ao hotel, meio embriagado, encontrando o amigo e a namorada na cama a dormir. Acorda-os dizendo-lhes que aquilo que não está certo. E o espectador pensa que Clint, pelo efeito do álcool, está ressentido e inveja os amantes nos braços um do outro, uma vez que foi abandonado pela rapariga de quem gostava. Aí, Orville, pergunta-lhe: mas o que é que não está certo? E Clint responde: Vocês têm-se um ao outro. Eu quase que tive alguém. E não está certo. Orville e a namorada continuam sem saber do que fala ele. Até que ele responde de forma algo ainda enigmática que está a falar do Clyde. Fargo corta logo para Clint e o casal ainda meio ensonado na carrinha, com Clyde na parte detrás. A meio da noite Clint decidiu que Clyde era o único que não tinha namorada e que, portanto, iriam tentar entrar a meio da noite num zoo para que o orangotango pudesse acasalar com uma orangotanga.
Se tudo isto é excessivo e um tanto ridículo, digam-me se não há nesta atitude, nesta cena, aquilo que conhecemos do herói eastwoodiano? Daquele que, em silêncio, na sombra, se sacrificará por aquele que é mais fraco, desprotegido, inocente. Mais tarde, a fechar, teremos outra cena destas e outra ainda em que Clint descobre que sendo ele todo corpo, a sua mente é tida pelo “mundo real” como demasiado ingénua, demasiado enganável. Trata-se de uma personagem algo inversa ao protagonista de Monkey Shines (Atracção Diabólica, 1988) de George A. Romero – o filme que compõe o raccord primata na crónica deste mês: o atleta que devém tetraplégico Allan Mann (Jason Beghe). Enquanto que a personagem de Clint derruba qualquer homem mas cai facilmente em situações ardilosas, já Allan perdeu a habilidade corporal, restando-lhe a voz de comando e o seu cérebro para gerir a relação ciumenta e obsessiva com a sua macaca.
E se se brincava com a aliteração entre o par Clint e Clyde, a mesma coisa faz Romero com Allan e Ella (o nome da macaca que o vai ajudar nas pequenas tarefas depois do seu acidente). No filme de Romero trabalha-se explicitamente a fusão do par. O amigo cientista de Allan, Geoffrey, injecta a macaca com raspas de cérebro humano e, em consequência, o animal torna-se mais homem, não sem que o homem se torne também mais animal. Esse é, aliás, o terreno por excelência de George Romero, no qual os zombies são um espelho da humanidade ainda por apodrecer. Trata-se pois de uma relação amorosa em que a inteligência de um contamina o instinto do outro e vice-versa.
Uma das coisas interessantes de Every Which Way but Loose é precisamente o facto da presença do animal não ser necessariamente nem alvo de ameaças (em nenhum momento algo de mal está prestes a acontecer a Clyde) nem fonte das mesmas, como acontece com o filme de Romero. O orangotango Clyde é o verdadeiro buddy de Clint – eles perseguem mauzões, bebem cervejolas, ajudam-se na queda – tão bonito o momento em que no final de uma perseguição wacky races a um par de motards indecentes, o macaco vem ajudar Clint a erguer-se no meio do pó. Como “gémeos símiameses”, Clint, em toda a sua falta de densidade intelectual e simplicidade, tem sobretudo no animal o seu duplo.
Já no filme de Romero essa duplicidade é bem mais perversa. Como no filme de James Fargo, estamos perante um “herói” masculino rodeado de figuras femininas que o abandonam ou que abusam da sua confiança e presença. Resta a Allan, uma personagem presa na sua “cabana” [para repegar o tema do isolamento em Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968)] devir um tanto máquina (o seu corpo é controlado por uma), assim como a macaca devirá humana. E é porque é a condição animal, que virá mimetizar a condição humana, que a história de buddies contada em Every Which Way but Loose dará lugar a um romance obsessivo, um tanto hitchcockiano no mundo romeriano.
E é por causa desta dupla forma de semelhança “símiamesa” que no primeiro caso estamos perante a comédia e no segundo perante o horror. Como quem permite pensar que, quando o homem tenta ser mais animal perde em “civilidade” e ganha em “apaziguamento”. Já quando é o animal a humanizar-se a ameaça do demónio do instinto organiza-se de uma forma que, ainda hoje, não deixamos de ver como intolerável. Ou talvez seja apenas o medo e o poder.
sábado, 25 de maio de 2019
"Synonymes" de Nadav Lapid
Numa das cenas mais enérgicas e divertidas do filme vencedor do Urso de Ouro e Prémio da Crítica em Berlim, Yoav, jovem israelita evadido do seu país e vindo para França, tem fome. Segue uma rapariga até um bar e começa a petiscar uns snacks que lá estavam a um canto. Eis senão quando, começa o clássico “Pump Up The Jam” dos Technotronic e toda a gente fica louca. O plano estático e geral de Nadav Lapid invade-se de jovens a dançar como se não houvesse amanhã. Sempre focados, temos agora rostos divertidos, pedaços de corpos, mãos em sítios marotos, traseiros ondeantes. Yoav consegue penetrar naquele mar de gente e, de gatas, vai caçar mais uns petiscos. Uns instantes depois sobe ao balcão do bar e começa a dançar efusivamente com um grande pão que, como se pode ver na imagem abaixo, vai partilhar, eroticamente, com uma jovem. Ela quer aquele pão, pois ele é um pão. Ele quer as duas coisas: poder comer literalmente o pão, mas também poder fazer dele um instrumento de performance social.
Se foco nesta cena particular é porque esta dualidade – entre o político e o performativo – é a estratégia constante de Synonymes (Sinónimos, 2019) para poder bater, insistentemente, à porta dos prémios (vide cena final), do panteão de cineastas “inovadores”, conscientes da eficácia da sua arte para a abordagem de “causas relevantes”. Os argumentos principais que li para justificar o poder do filme prendem-se com o facto de Yoav representar não o tipo excluído, menorizado, que procura uma “aberta” no mundo cosmopolita e burguês da Paris dos sonhos europeus, mas sim alguém cuja “cólera ultrapassa a pobreza”, alguém que não se revê na ideia de fronteira, que ora rechaça ora pede de volta o seu passado, que corre, dança, saltita, que rejeita a indoutrinação de regras gaulesas da liberdade e tolerância, que não procura a construção laboral ou a distinção entre o artista e o perverso.
Esta nova reivindicação “existencial”, diz ainda Stéphane Delorme no editorial dos Cahiers de Março, vem perturbar a própria noção instalada do cinema francês, com o seu “manto laranja” (e do laranja ao “gilet jaune” vai um passinho). Casaco que sempre acompanhará o herói e que, ao mesmo tempo que exterioriza uma forma de integração, interiormente mantém uma certa “nudez” (as camisas que o amigo francês lhe deu serviram apenas para tapar um buraco no tecto do apartamento onde vai habitar).
Independente de poder considerar justa esta interpretação, ela padece, a meu ver, do problema de fechar os olhos a duas questões. A primeira é a de saber se o filme de Lapid é, realmente, uma alternativa a qualquer coisa. Isto é, se toda a deambulação citadina, toda a raiva contestatária, toda a ridicularização de um status quo do sistema, não são peças um tanto já gastas, já filmadas, uma forma acolchoada de cinematizar o político. O político que parte do jovem modelo e bem parecido, dos discursos pseudo-poéticos, das citações e referências cómodas, das tiradas bacocas (“casar é mais rápido do que foder”), dos planos sugestivos e simbólicos.
A segunda questão é mais interessante, porque mais cinematográfica. Podia pensar-se que a personagem de Yoav seria o centro de Synonymes com as tais novas reivindicações. Contudo, a personagem aparece no filme de Lapid como instrumento de sedução. Por um lado, a sedução política, as palavras do dicionário francês encontradas para serem mandadas à cara do espectador. Como naquele plano frontal em que Lapid “usa” Yoav para dizer-nos, in our face, o seguinte: “Vim para França para fugir de Israel. Para fugir daquele estado mau, obsceno, ignorante, idiota, sórdido, fétido, rude, abominável, odioso, lamentável, repugnante, detestável, cheio de maldade, cheio de ruindade”… No final do monólogo temos um plano lateral do seu amigo escritor, como quem diz: isto é um diálogo. Só que não é. É uma velha denúncia com novas palavras.
Por outro lado, Yoav é um instrumento de sedução estética: todos as suas palavras, gestos dançados, corridas, são incorporadas nos planos como mini-atracções. Ele deve provocar e o espectador sentir-se provocado: um dedo no cu, um statement no metro, um statement na backstage de um concerto de música clássica, uma queda nua e teatral numa casa grande e abandonada, uma frase grandiosa. Tudo deve parecer diferente. Tudo tem um sabor postiço não tanto para construir a tal “alternativa existencial”, como para distrair da seriedade da mensagem política.
Fico com a sensação que Lapid viu na sua personagem um novo Belmondo dos tempos modernos, e viu em si próprio um novo Godard politizado e romantizado. Contudo, a grande diferença talvez se possa encontrar num vulgar dicionário de sinónimos: seduzir não é o mesmo que provocar. E Godard era (é) o grande provocador. Lapid, por enquanto, só consegue seduzir.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
"O Mar Enrola na Areia" de Catarina Mourão
A nossa memória crê-mo-la drama intenso, romance mítico, filme de acção, mas quase sempre nos enganamos. A memória é filme experimental, faca de dois gumes, com a banda som e a banda imagem entre aquilo que achámos que era e que poderia ser; entre o que foi e o que filmámos com a nossa percepção; a percepção-película cujo tempo vai desgastando o registado; o grão a entrar nas histórias, a areia a enrolar-se no mar ou era o contrário…? Catarina Mourão quando fazia o seu filme anterior, A Toca do Lobo (2015), encontrou num filme familiar uns segundos de uma figura conhecida das praias portuguesas nos anos 50. Uma lembrança de um homem conhecido como “Catitinha” que vinha junto das crianças brincar com elas, contar-lhes histórias. Ninguém sabia muito bem quem era, de onde vinha, uns diziam que tinha perdido um filho num acidente e enlouquecera.
A partir daqui e com recurso a vários filmes balneares da época, Catarina expande, distorce, contamina, efabula essa memória de infância. Estamos de volta às praias de “crianças chilreantes” e “epidermes tostadas”, lado a lado com barraquinhas “invisíveis” e fechadas onde as freiras se banhavam nuas ao sol, as praias dos banhos compulsórios das crianças, dos rebanhos de meninos e meninas nas sestas obrigatórias. Estamos no tempo do cinema mudo com cartões que evocam um tempo e uma açcão (neste caso, uma memória), ao mesmo tempo que no gesto do arrêt sur l’archive. Idílio familiar e experimentalismo visual. Do lado de lá de cada memória inocente, esconde-se, latente, uma possibilidade perversa. A versão oficial dos arquivos de filmes familiares, oficiais, amadores, quando apanhados pelo gesto da manipulação sobre esse mesmo arquivo (o digital fez explodir esse gesto, mas daquele não é exclusivo, evidentemente) especulam sobre o que não é dado a ver: um apito aterrorizador, um toque no sítio errado, uma versão oficial e cândida dos tempos de relaxamento e férias, problematizada pelo poder ambíguo do cinema. Tudo isto trabalha e dá a ver este excelente filme de Catarina Mourão.
"Fordlândia Malaise" de Susana de Sousa Dias
Um dos gestos que mais vem trabalhando Susana de Sousa Dias é o de problematizar e diversificar as formas pelas quais as imagens fixas de um arquivo podem ser negadas, acrescentadas, anotadas, ressuscitadas no seu movimento para um presente. E isto quer pelo trabalho sobre o som (vozes, comentários, mas não exclusivamente), quer pela modificação da imagem (os fades, as desacelerações). Nesta curta-metragem sobre Fordlândia, cidade criada pelo americano Henry Ford no centro da Amazónia, e hoje semi-abandonada, esse gesto de acordar o fantasma nas imagens torna-se explícito nos primeiros momentos. Visitamos aquele espaço, pela primeira vez, através dessa imobilidade, dessa cristalização-morte das fotografias de arquivo sobre a cidade à época, e é a aceleração, repetição e montagem ao tom de uma percussão dançante que Susana irá promover uma tentativa de dar vida, ressuscitar esse espaço. Sambar o arquivo, gesto audaz. Why not?
Poderíamos dizer que a essa “reanimação” sucede-se um filme acerca de uma comunidade fantasmática, planos de drone, calmos e apaziguados, um “western abandonado” em que as poucas pessoas vão passando, muito raramente, como formigas. Mas talvez interesse mais o mapa de um abandono, a genealogia de um “sonho que deu errado”, um duelo de aves que se cruza no céu. Uma das senhoras que ouvimos no filme diz: “você não vê ninguém, não tem um vivente (…) não tem um movimento para as pessoas se distraírem…”. Talvez este desabafo seja um bom comentário para olhar para esta bela obra de Susana de Sousa Dias. As pessoas ouvidas e nunca vistas (excepto numa adenda colorida), pelo seu movimento, nunca são distracções: ficamos a sós com o fantasma do espaço, com as casas, os espaços abertos, os caminhos pouco percorridos, as oficinas abandonadas. São estes espaços os habitat das narrativas míticas, de uma alma borboleta de passagem, de uma maldição, de uma câmara que se eleva, espreguiçando-se, ou de uma rádio que, misteriosamente, dá sinais de vida.
quarta-feira, 22 de maio de 2019
"Past Perfect" de Jorge Jácome
Um dos elementos mais cativantes desta nova curta-metragem de Jorge Jácome é a forma delicada como gere a sua estrutura heterogénea. Baseada num peça de Pedro Penim, intitulada “Antes”, e adaptando um diálogo entre um psicanalista e um dinossauro, Past Perfect começa por ser um filme de natureza ensaística sobre esta ideia de que no passado era tudo melhor do que no presente. Sem personagens visíveis e em imagens tremeluzentes, desfocadas, duplicadas, o espaço surge-nos indefinido. Já o tempo é o de escavar e procurar por uma golden age, um “passado perfeito” que dê conteúdo a essa ânsia de olhar para o feito, o dito, o vivido, o filmado, como momentos de idílica completude. O diálogo mudo vai recuando ao longínquo ano de 2014, mas também ao início da 1ª Guerra Mundial, à reflexão de Benjamin sobre o progresso, à poesia de Schiller, etc.
A gestão de que falava acomoda esta dimensão ensaística e visualmente experimental, numa cadência que vai passando por diferentes estados: o sarcasmo, o drama existencial, a surpresa, os momentos de verdadeira/fake nostalgia, o apaziguamento vagamente romântico e doce acerca de uma ideia de fim com esqueletos aninhados para (quase) todo o sempre. Se recordarem o final de Flores (2017), curta premiada com o prémio novo talento na edição de 2017 do Indielisboa, ela terminava com um dos jovens filmados a dirigir-se à câmara e sentíamos uma certa reviravolta emocional que, de certa forma, unia com laço forte os momentos documentais, ficcionais, românticos que acabáramos de ver. Jácome revela semelhante talento em Past Perfect: a perfeita consciência do timing de comunicação emocional com espectador. Os planos a negro para pontuar o diálogo, a mudança de tempos, a pausa para a introdução do twist em torno de uma melodia bela e hipnotizadora, a filosofia da cultura abraçada ao karaoke, mesmo a forma como o efeito da cena final volta a laçar tudo num tom delico-doce. O que sentimos no cinema de Jácome é que uma vez “presos” nas suas imagens ficamos sujeitos às suas regras e isso é a maior liberdade que o espectador pode sentir diante de um artista que sabe o peso da responsabilidade. Nestes pouco mais de vinte minutos faz-nos caminhar pela terra, pelo início dos tempos, pelo osso, pela nostalgia, pela pura exaltação. It’s a cinematic party.
terça-feira, 21 de maio de 2019
"Understory" de Margarida Cardoso
Os fãs do cineasta alemão Werner Herzog sabem bem esta graça: a de que qualquer tópico ou conjunto de imagens, se narrada pelo inglês agressivo e marcado do autor, se podem tornar automaticamente interessantes. Não vale a pena chegar a tanto com a voz off de Margarida Cardoso nesta viagem pela travessia do cacau ao chocolate, mas o certo é que da serenidade e doçura do timbre da sua voz retiramos muitas coisas belas: dela desprende-se uma ideia de verdadeira familiaridade com o espaço africano (basta consultar vários dos seus filmes anteriores) como se esse passado fílmico habitasse, fosse o understory de Understory; a sua voz é também a bússola de uma viagem que é mais um fluir e uma fruição, onde o tempo vai apaziguando. Por exemplo, ao descer o rio Purus, no segmento do filme passado na Amazónia, Margarida diz: “da lancha voadora que se dirigia para este, podia ver pela primeira vez a vegetação cerrada da floresta amazónica. Talvez por já estarmos muito perto da noite tudo me parecia indistinto e misterioso. Imaginei como seria embrenhar-me na floresta não hoje, mas no tempo em que se sabia muito pouco sobre tudo e em que a terra era quadrada e plana. Imaginei os caçadores de plantas, naturalistas, botânicos e o seu espanto ao perceberem a espantosa diversidade no novo mundo. Um mundo que a seu olhos era virgem e complexo, criado unicamente pelas mutações caprichosas da natureza.”
Esta passagem ilustra também esta função de um voz off que funciona como manto de honestidade do projecto, um guia de uma curiosidade que transcende em muito aquilo que poderia ser o mais evidente num documentário de consciência social acerca da produção e comércio do cacau. Margarida Cardoso não se escusa a fazer o raccord entre o escravo de outrora e o escravo de hoje, os novos-empresários-pobres-para-sempre que apanham o cacau e nem sequer nunca se aproximaram de um aeroporto e suas gifts shops onde o chocolate será vendido a preços que nada têm a ver com o que recebem. Fá-lo, dizia, e de forma engenhosa, colocando lado a lado, em split screen, filmes coloniais portugueses de finais dos anos 20 e anos 30 e imagens de hoje. A história que se encolhe, que rima de forma empobrecedora. Mas depois há tudo o resto em Understory, um conjunto de coisas “indistintas e misteriosas” que a câmara de Margarida Cardoso intui terem tanta ou mais importância para compreender toda essa dinâmica da relação comercial em torno de um fruto colhido em São Tomé e em outras zonas delimitadas de África e América do Sul. Por debaixo da história estão as formigas em trocas mutualistas com outros bichos em busca de um pouco de açúcar do cacau, o cacaueiro que dá centenas de milhares de flores e só 0.1% de frutos, mas também um cão prestes a adormecer, um pássaro a debicar à chuva. É este olho atento aos detalhes que permite agigantar o espaço e o tema “oficial” do filme. Por extensão o espectador devém viajante numa travessia que apetece que não tenha fim. Um espectador que devém intemporal, curioso, em fusão com o cinema e com a abertura de espírito genuína e bela de Understory.
segunda-feira, 20 de maio de 2019
"Alva" de Ico Costa
Bastava comparar as sinopses, e agora o visionamento da primeira longa de Ico Costa confirma-o: Alva estende a um formato maior e a uma outra densidade aqueles que eram os impulsos ficcionais presentes nas suas curtas, Quatro horas descalço (2012) e Antero (2014). Um ambiente de ruralidade, personagens solitárias em fuga ou em busca de justiça, uma relação de comunhão mas, ou mesmo tempo, de superação dos elementos da natureza. Estamos portanto num mundo de parcas palavras, câmara à mão, trémula ante o desafio de tais elementos, um mundo de chuva, fogo, névoa, de ribanceiras íngremes, caminhos de cabras, arbustos de bagas silvestres, lagos. Ico Costa apresenta-nos o seu Henrique (Henrique Bonacho), olheiras fundas e cigarros fortes e toscos. Um homem fugido de um acto que não sabemos bem as causas nem as consequências.
Baseado em algumas histórias verídicas (é impossível não pensar na história de Manuel Palito), com influência no cinema do argentino Lisandro Alonso e de uma técnica imersiva de algum do novo cinema romeno, Alva parece ir mostrando ao espectador um progressivo e crescente despojamento. Filmado em 16 mm, imagem granulosa, o mundo de Henrique parece ir perdendo peças/pessoas, assim como a narrativa, depois de construir momentos de tensão ao longo da sua travessia, questiona precisamente as razões de todo esta odisseia de isolamento e sobrevivência. Mas há um lado b em todo este fascínio com o isolamento e a natureza. O filme exprime-o bem, a possibilidade de um realizador ter a exclusividade de mostrar esse espaço de esconderijo e catacumba, através da sua câmara. É ele que o vê a fazer a barba de olhos fechados, por exemplo. Ninguém sabe de Henrique mas a câmara sabe sempre, nessoutra dimensão de comunhão. E aqui Alva talvez esteja até mais próximo dos documentários de Wang Bing e das personagens de Cassavetes. Só que aqui, ao contrário do que acontece com o cineasta americano, as palavras são já adereço descartável.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
“The Beach Bum”: life breakers
I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of life, and see if I could not learn what it had to teach, and not, when I came to die, discover that I had not lived.
Henry David Thoreau
Sobre este seu último filme, Harmony Korine tem dito que teve vontade de fazer uma stoner comedy das que via em adolescente, como as da dupla Cheech and Chong. Mas que o ritmo frenético dos gags, dos tombos da slapstick, da comédia física, o inspirou muito para a criação deste poeta, Moondog, milionário e boémio. A outra inspiração foram os charrados, os pescadores, os bêbados da zona de Key West em Miami, no Sul da Flórida, local para onde o próprio realizador escapa de vez em quando.
Mas há toda uma genealogia a fazer, se calhar mais abrangente, certamente mais indirecta. Alguns títulos que ajudam a compreender a filiação deste The Beach Bum (The Beach Bum: A Vida Numa Boa, 2019): com a personagem do “dude” de Jeff Bridges de The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998) à cabeça; mas também toda a série de filmes da nova hollywood produzidos precisamente sob as virtudes criativas do escapismo, das drogas e do álcool; Fear and Loathing in Las Vegas (Delírio em Las Vegas, 1998) de Terry Gilliam; a personagem de Joaquin Phoenix em Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014); e puxando talvez menos pelo tom e mais pelo tema, não seria descabido pensar num Maps to the Stars (Mapas Para as Estrelas, 2014) de David Cronenberg, e até, porque não?, nas origens pacíficas e quotidianas (neste caso em antítese) da criatividade poética em Paterson (2016) de Jim Jarmusch.
Todo este name dropping sem grande explicação serve sobretudo para dar a noção de que estamos num território “minado”, que é como quem diz, apetecível ao cinema. E talvez esse seja mesmo um dos problemas deste filme de Korine, o estar rodeado de outros personagens que já fizeram o elogio dos prazeres, quer como motor criativo, quer como statement de vida. A personagem de Matthew McConaughey – que deve ter sido escolhido por Korine após ter colocado na sua liquidificadora mental papéis como os que o actor teve em Magic Mike (2012) e em Dallas Buyers Club (O Clube de Dallas, 2013) – não tem, se formos a ver, nada de muito novo a acrescentar nesta discussão acerca do génio movido a álcool e a diversão 24/7. Dei indicações do cinema, mas o périplo dos exemplos percorre todas as artes e é bem mais longo e anterior, sabe-se.
Talvez seja por isso mais “produtivo” pensar na relação deste poeta-vagabundo com a dos jovens embriagados e a abarrotar de expectativas de Spring Breakers (Spring Breakers: Viagem de Finalistas, 2013). O mesmo cenário do Sul da Flórida, a ideia de transgressão e decadência pop, as cores berrantes da fotografia de Benoît Debie. Tudo aparece apontar para que se possa pensar numa continuidade entre os dois filmes. Não apenas a nível formal, mas, se quisermos, enquanto projecto existencial. Como se o moto da vida de Moondog, espécie de manifesto “Walden” tardo-capitalista, fosse afinal o prolongamento da lógica spring breaker aplicado à idade adulta. O que nos deixa com um dilema semelhante àquele que temos com os últimos filmes de Terrence Mallick – penso sobretudo em To the Wonder (A Essência do Amor, 2012) e Knight of Cups (Cavaleiro de Copas, 2015): qual o grau de distanciamento crítico da vulgaridade que se apresenta e qual o grau de fascínio?
A técnica de Korine nunca é o da simples denúncia. Aqui, como de resto em Spring Breakers, o norte-americano usa a caricatura: Moondog parece um desenho animado de tão carregado que é, movendo-se num catálogo de cenas cool, um marinheiro a ir de porto em porto e a encontrar “figuras mitológicas”. Além disso, Korine faz o elogio da hipérbole e da exaltação como instrumentos de ambiguidade. Aparentemente, estes dois filmes celebram e criticam no mesmo gesto. Peggy Lee canta “Is That All There Is?” e a resposta é sim e a resposta é não. Sim, porque é o motto beatnick do just wanna jave fun, acelerando os sumos da criatividade e da vida como simples sucessão de momentos de diversão. Não, porque Moondog esqueceu “o quão rico ele era” (juntamente com a mulher) e Korine mostra bem que o full party mode é um privilégio daqueles que podem estourar mansões para matar o tédio.
Por outras palavras, a stoner comedy é hoje muito menos a pura possibilidade de uma alternativa de vida (o rir-se na cara da civilização) e muito mais a estupidificação do quotidiano mainstream (a civilização a rir-se na nossa cara). Talvez o filme de Korine não possa arcar com essa culpa, mas pode bem demonstrar essa diferença.
terça-feira, 14 de maio de 2019
Ver filmes, escrever sobre filmes. E depois ver mais filmes e escrever sobre mais filmes. Ver e escrever. Viagem e relato. A crítica, creio, assemelha às missivas que escrevemos à nossa família quando estamos longe. Só que a família não é bem a nossa, é mais uma escrita à posteridade. Que é como quem diz, escrever a nós mesmos num futuro em que já não saberemos ler. Ou ver. Talvez daí a urgência, a excitação, o frémito. O medo, também.
segunda-feira, 13 de maio de 2019
"Filomena" de Pedro Cabeleira
Ficaria com problemas na consciência senão começasse por descrever a abertura deste Filomena (2019). Sons e rangeres metálicos de cabos e barcos. Ecrã ainda negro e um fade in lento sobre um plano aberto do mar (que segundos depois saberemos ser rio). Depois um cross fade com outros dois planos: um travelling sobre uma silhueta que caminha reflectida, invertida, sobre os azulejos brilhantes de um chão que vai aos poucos tomando o lugar do rio; e o plano absorto do rosto de Sandra Hung, a Filomena. O plano seguinte, aberto, vai desfazer a ilusão da viagem longínqua que se nos estava a formar na imaginação (e não é esse um dos temas do filme?). Já com os sinais sonoros típicos, percebemos que Filomena parou para apertar o sapato e que está numa estação fluvial e que veio trabalhar, como todos os dias.
Depois da orgia de sons e cores de Verão Danado (2017) esta curta de Pedro Cabeleira é certamente mais clássica. Tendo por base a relação amorosa entre uma empregada de limpeza e o homem que se presume engenheiro, que lhe pede para partirem para longe (o Brasil), o jovem realizador procura reflectir, formal e tematicamente, sobre um conjunto de oposições. Entre o já referido fechado e a revelação do plano aberto (talvez isto já esteja, a seu modo, presente no filme anterior), mas também entre o longínquo e o distante e entre o alto e o baixo. O longínquo do oceano que separa o Brasil de Portugal, mas sobretudo do jet lag dos aviões da patroa por oposição com as viagens constantes de comboio da colega, e do rio que Filomena atravessa diariamente. No final, as majestáticas panorâmicas ascendentes e descendentes filmam a décalage, a escada social, ou também o plano do andar de cima onde está a patroa e as escadas a separar o espaço, cá em baixo, que as empregadas limpam. Contudo, a música lírica e efusiva que, em certos momentos acompanha Filomena, parece ser uma bonita proposta de superação dessas oposições.
domingo, 12 de maio de 2019
"Poder Fantasma" de Afonso Mota
Na entrevista a Afonso Mota, que publicámos por ocasião da sua longa-metragem Aos Nossos Amigos (2017), o jovem realizador, quando confrontado por Ricardo Vieira Lisboa sobre se as personagens dos seus filmes andavam à deriva respondeu isto: “Não usaria a expressão “à deriva”, diria mais “sem pressa”. Porque havendo um objectivo não tens que estar sempre a trabalhar para lá chegar, “à deriva” parece que não tens objectivo.” Esta sua última curta, instalando-se docemente no poder fantasmático do som, ilustra bem esta diferença. As personagens parecem deambular por um quotidiano lisboeta, uma viagem entre jogos de futebol “boring”, entre vinis interrompidos, um cigarro, uma página de um livro de McLuhan. Um “sem pressas” que nem por isso é deriva ansiosa. Um sem pressas que é mais o tempo de auscultar o fantasma da criação, do apuro do ouvido, da procura. Procura quer dos sons parasitas que não se sabe de onde vêm [a fazer lembrar o momento cómico de Vasco Pimentel no final de Aquele Querido Mês de Agosto (2008)], quer dos sons certos das folhas, dos gatos ronronantes, que uns procuram e outros perdem.
Vindo dos seus filmes anteriores está esta bonita e dolente presença dos amigos e colegas de Mota (Diogo Baldeia, Duarte Coimbra, entre outros), algo que, mais do que uma homenagem, é uma forma de filmar o trabalho do cinema, individual e colectivo, pleno de inter-penetrações e influências mútuas. O tempo em comum, as conversas em torno desse trabalho, a procura conjunta, têm esse flow de uma novissíma vaga serena, sem o frenesim metralhador daqueloutra. Num dos momentos mais preciosos de Poder Fantasma, o som da conversa entre Afonso Mota e Rafael Cardoso esvai-se em fade e ficamos com a música lenta de “Forever” de Pete Drake. O tempo da juventude, o cinema estende-a ao máximo e percebemos que nem só o som tem essa presença invisível e fantástica que o filme procura trabalhar: também a amizade habita esse espectro do indizível. É entre toda esta doçura, mas também nesta solidão nocturna da caça que o fantasma se revela. Belíssimo.
Vindo dos seus filmes anteriores está esta bonita e dolente presença dos amigos e colegas de Mota (Diogo Baldeia, Duarte Coimbra, entre outros), algo que, mais do que uma homenagem, é uma forma de filmar o trabalho do cinema, individual e colectivo, pleno de inter-penetrações e influências mútuas. O tempo em comum, as conversas em torno desse trabalho, a procura conjunta, têm esse flow de uma novissíma vaga serena, sem o frenesim metralhador daqueloutra. Num dos momentos mais preciosos de Poder Fantasma, o som da conversa entre Afonso Mota e Rafael Cardoso esvai-se em fade e ficamos com a música lenta de “Forever” de Pete Drake. O tempo da juventude, o cinema estende-a ao máximo e percebemos que nem só o som tem essa presença invisível e fantástica que o filme procura trabalhar: também a amizade habita esse espectro do indizível. É entre toda esta doçura, mas também nesta solidão nocturna da caça que o fantasma se revela. Belíssimo.
sábado, 11 de maio de 2019
"Campo" de Tiago Hespanha
As ironias são mui belas. O melhor filme que vi na competição nacional até agora começa, depois da névoa, das árvores dormindo, dos planos William Turner, com a célebre frase: “e no início era o caos”. Ironia pois Tiago Hespanha está muito longe da noção de caos, procurando através de um dispositivo rigoroso, de pontual voz off, pausada e reflexiva, discorrer sobre as várias noções da palavra campo, enquanto abre os espaços da base militar de Alcochete. Aliás, se prolongarmos a ironia, podia mesmo dizer – trazendo aqui o outro filme nacional de longa metragem que mais me chamou a atenção nesta primeira metade do festival, A Casa e os Cães (2019) de Madalena Fragoso e Margarida Meneses – que o que falta a cada um dos filmes, sobra ao outro. Isto é, que a Campo falta-lhe ser um nadinha menos “casa” (casa enquanto estrutura marcada e, por vezes, um tanto rígida) e que a Casa e os Cães precisava ser um pouco menos “campo” (campo enquanto espaço aberto, sem forma estanque). Dito isto, a obra de Tiago Hespanha cativa pela inteligência da sua abordagem.
Entre os muitos pontos interessantes pensei em Campo como a filmagem de um documentário sobre uma ficção – presente sobretudo nos reenactments dos exercícios militares – como se assistíssemos a um Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997) sem inimigos visíveis, uma battle in the stars (é esse o nome da música que o rapaz, vizinho do campo militar, compõe ao piano) transformada em fogo de artifício de fim de ano, uma cartografia da galáxia ensaiada nas matas dos arredores de Lisboa, com reféns-stand in e com alvos de brincar. A esta “guerra estelar” não faltam mesmo a destruição de portas, a queda “mágica” de árvores (são os planos que elidem a queda ora que filmam a queda sem vermos o corte), o mapeamento de navezinhas naturais como os pássaros com os seus pios de contacto ou as abelhas que ameaçam mecanizar-se. As referências ao mito de Protágoras e ao “homem sem qualidades” (além do fogo), os planos intemporais e ancestrais da natureza ajudam a compor o argumento de que a acção militar (com os seus sistemas de autoridade, as suas regras “vazias”) faz parte de um ímpeto da natureza humana que vai transformando mitos e ficções (o Grande Inimigo como uma ficção) numa história oficial. No fundo, constituindo campos delimitados de batalha e conquista da terra. Basta pensar na leitura de Agamben sobre a noção de campo, e no modelo carcerário das cidades contemporâneas. Claro que em Portugal, um país periférico e de certa forma subjugado, uma investigação wisemaniana acerca dos espaços e rituais da “instituição militar” – como é, em alguns momentos, o filme de Tiago Hespanha – não deixa de ganhar um cunho muito irónico. São as tais ironias belas.
sexta-feira, 10 de maio de 2019
"A Casa e os Cães" de Madalena Fragoso e Margarida Meneses
A colocação desta longa com cabeça de média-metragem na secção Novíssimos permite pensar numa questão que valerá a pena reflectir. À partida, os filmes desta secção serão primeiras obras, em teoria, de jovens cineastas em busca de uma dada forma, de apuro de um certo olhar. Nesse sentido, A Casa e os Cães (2019), pela sua dimensão de experimentação – seja com a textura e a luminosidade das imagens, pelo split screen, pela moldagem da noção de plano, as diferentes câmaras, telemóveis e webcams, os registos no interior e no exterior, as notas escritas no ecrã, etc., etc. – acaba por funcionar dessa maneira. Como se o espaço da casa, que durante cinco anos aqueles jovens partilharam, e os seus três cães funcionassem como pólos gravitacionais de atracção para as suas imagens, como forma de dar direcção ao grande caudal dos registos que iam fazendo ao longo do tempo. Talvez uma leitura apressada possa ver no filme uma certa dimensão informe, um frankenstein de momentos sem grande coesão. Contudo, como se reflecte a dada altura, pode dar-se o caso de a vida ser apenas isso: uma soma de momentos, de formas de aceitação do caos, de produzir obra a partir dessa fugacidade.
Se assim é, se é de uma forma-informe que estamos a falar, que justiça haverá de a qualificar como um exercício próprio de um novíssimo? Percebem onde quero chegar? [Quanto mais não seja também porque esta obra de grupo, embora assinado pela Madalena Fragoso e a Margarida Meneses, seja, quanto a mim, superior a quase todas as longas da competição nacional que vi até agora]. Talvez que apenas formalmente estejamos perante esse afinar da pontaria da arma do realizador: a observação. Talvez que estejamos afinal a assistir a uma outra forma da condução da relação entre o cânone e o caos. E é preciso assumir isso: que as mudanças, os choros, os cansaços, a emoção, a galhofa, os passeios (com e sem cão), as conversas entre o filosófico e o brega sejam a obra. Obra de um certo existencialismo tardio, despido de matéria polida, retomando as obras diaristas de Jonas Mekas, Ross McElwee ou Jonathan Caouette. Um espaço e um tempo a várias mãos, num diário colectivo, que deu forma, registou, esses momentos de crescimento das suas vidas. Mas cujo crescimento não abdica de querer transformar o paradigma, de querer ver a Praça de Londres como uma Montanha Mágica, de arrastar para debaixo do tapete os grandes desenlaces e ficar com um brilho do sol numa árvore, um contraluz forever, um espaço mítico e único que, quem veio habitar depois a casa, nunca chegará a saber o que era.
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