Lazzaro felice, vencedor do prémio para o melhor argumento em Cannes este ano, é baseado em parte num caso verídico acerca de uma marquesa italiana que, tendo uma propriedade rural isolada, escondeu dos seus camponeses que o feudalismo havia terminado. Uma perversa e conveniente máquina do tempo digna de um argumento de M. Night Shyamalan ou de um episódio de The Twilight Zone. A realizadora Alice Rohrwacher quis expandir um pouco tal bizarria transportando-a para o seu mundo de fábula, na qual a ruralidade surge como posto último, sagrado, celestial, oposto a uma certa perversão urbana. Em Le meraviglie (O País das Maravilhas, 2014) já isso se explorava, tendo este por base o mundo dos reality shows por oposição a uma infância passada no campo, junto das abelhas (o seu pai era apicultor). Neste seu último filme, a oposição campo/cidade não surge tanto como forma de nos fazer tomar partido por um dos lados, mas é mais o palco de uma recorrente e intemporal luta de classes.
Por isso, Lazzaro estrutura-se em duas partes: na primeira Rohrwacher filma a tal condessa (Nicoletta Braschi) enganando os seus camponeses e na segunda, já após descoberto o “esquema”, a mesma exploração continua, por outros meios, na cidade. As maravilhas de Lazzaro começam aqui, na forma como o caso verídico devém fábula, e a fábula, acto verídico. A transição destes dois espaços nunca é puramente lógica, os raccords de planos e espaços saltam idades impossíveis de comprovar pela razão. Depois temos o jovem Adriano Tardiolo, escolhido entre mais de 1000 candidatos, que faz de Lazzaro. Escolha impressionante a mostrar como o casting pode ser o ponto de partida para uma certa transcendência do rosto e da expressão. A bondade pura – como o burro em Bresson [Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966)] -, que, contra a exploração, se ergue como Lázaro e sempre regressa. Independentemente desta leitura funcional e política, há uma outra “política” que importa aferir. Embora se tenha visto este Lazzaro felice como uma espécie de Miracolo a Milano (1951), convém dizer que o “eterno retorno” da bondade pode muito bem passar pelo “eterno retorno” de um rosto que inaugura um mundo. Uma ressurreição do cinema italiano que visse surgir em Adriano, o seu novo Ninetto Davoli. E Pasolini não está 100 por cento arredado deste universo, embora, há que dizê-lo, o filme de Rohrwacher termine com a arma do lirismo apontada à cabeça do espectador. Bach, música esvoaçante, um lobo nobre, um apedrejamento crístico e urbano. Isto, creio, Pasolini nunca filmaria. Mas tudo somado, é um dos mais interessantes filmes do ano.
Gostei muito!
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