segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Hitchcocks finais, diferença e repetição


Tenho estado a ver os últimos filmes do Hitchcock. Alguns nunca tinha visto, outros não tinha lembrança. Falo de filmes como Marnie, Torn Curtain, Topaz. O entusiasmo, devo dizer, fica aquém do esperado. Mas para mim, mais do que relatar uma dada reacção, interessa-me reflectir sobre a razão destas "semi-decepções". Um autor produz-se numa certa unidade no tempo - uma série de diferenças e repetições que se vão acumulado, aos poucos, variando aqui ou acolá, evoluindo num mundo cada vez mais constituído, mais ou menos estável em seus alicerces. Contudo, nestes últimos filmes é mais difícil deixar vir à tona (revelar, no sentido fotográfico) a diferença do que a repetição. Como se ela fosse ínfima, subtil e necessitasse de um olhar muito atento e apurado, um olho que veja e reveja, um olho-microscópico. Ao mesmo tempo, as cenas dos thrillers de espionagem, as suas obsessões, perseguições, traumas, funcionam para o espectador do mundo hitchcockiano como aquelas atracções do parque de diversões que, já se tendo experimentado uma e outra vez, sabemos o local onde as mesmas se encontram e até nem recusamos, uma vez ou outra, voltar a andar nelas. Por exemplo, a perseguição a Paul Newman em Torn Curtain, com a presença sonora dos passos, o passado encoberto e "vertiginoso" (no sentido da vertigem do Vertigo) de Tippi Hedren em Marnie, o próprio local da sala de espectáculo como espaço de tensão de Torn, os eternos macguffins que deglutimos, talvez um pouco cansados da cenoura que nos faz mover o olhar. Contudo, há uma outra dimensão, talvez melancólica, algo revisionista, que estes filmes contêm. A facilidade com que neles mais facilmente detectamos a repetição e menos a diferença transporta a nossa subjectividade para um certo passado. Ver estes filmes finais de Hitchcock e neles detectar sobretudo estrutura e esquema é como olhar para um urso de peluche da nossa infância todo descarnado, com as molas interiores já de fora. É um "esventramento" que não deixa contudo de ter uma dimensão de álbum de recordações. O Hitchcock maduro é também uma lembrança do Hitchcock vigoroso, um folhear, sequência a sequência, do seu passado, uma passagem pelos locais onde tivemos medo, sentimos culpa, de quando o sangue nos subiu à cabeça na sala escura. No fundo, os hitchcocks finais são ecos do seu toque, uma pressão que vai afrouxando aos poucos mas da qual ainda recordamos a marca na carne, na mente.

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