Há uns dias surgiu-me assim meio de improviso, num debate em que participei acerca do excelente Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), a expressão “cubismo existencial”. O que queria defender era a capacidade do filme de Ryûsuke Hamaguchi sempre ir frustrando a nossa tendência de engavetar situações, de pôr de um lado as coisas melhores e do outro as piores. Tudo era possível, de todas as perspectivas, sem hierarquias, com todas as acções e suas consequências, umas boas outras más. Nada melhor do que tudo o resto. Ora, pegando num expressão trabalhada por filósofos como Étienne Souriau ou Bruno Latour – a noção de modo de existência – podemos ser tentados a adicionar algo mais a esta ideia de cubismo existencial. Tal como a noção de modo de existência precisa quer de uma forma específica de ser, quer de condições que veridicção, podemos acrescentar que ao cubismo existencial de Hamaguchi poderiam ser adicionadas as condições de percepção visuais de uma criança, tal como expressas neste Estiu 1993 de Carla Simón.
O fito da autora é autobiográfico. Um filme sobre uma menina de seis anos que perde a mãe (já havia ficado orfã de pai anos antes) e vai viver com o tio, sua mulher e prima para uma aldeia longe da sua Barcelona Natal. Podemos dizer que, narrativamente, o filme busca compilar pequenos episódios vividos por Carla na altura, misturados com sensações, emoções próprias das crianças. E depois um silêncio e mistério muito Víctor Ericianos. Podemos até ir ao ponto de perceber aquele Verão como o momento em que as lágrimas pela morte da mãe (as mesmas que, quando o filme abre, estão secas e invisíveis) hão-de sair cá para fora. Mas aquilo que deslumbra neste Estiu 1993 é precisamente a forma como reinventando o ponto de vista da criança, vamos tendo acesso a fogachos de mundo, de baixo para cima, a brincadeiras, a birras, a cenas incompletas. Ou fugas, asneiras, injustiças e, nos seus interstícios, lá vem o “grande drama”, aquele que se vai instalando aos poucos, aquele para os quais os adultos vão e vêm como que sendo chamados, pontualmente, a uma boca de cena. Carla Simón ganhou um prémio para melhor primeira longa em Berlim e Estiu 1993 vai aos óscares em representação espanhola para um filme rodado em catalão (a arte prega destas partidas à política). Mas o que me parece mais relevante, e que proponho, é que vejamos esta obra como um certo modo do cinema esculpir a percepção infantil. De nos dar acesso a um cubismo perceptivo – tudo é vago e nítido, irrelevante e central ao mesmo tempo -, que é condição de veridicidade desse referido cubismo existencial que podemos ver em Happy Hour. Dois dos melhores filmes do ano que podem ser vistos como ponto e contraponto de um dado multi-perspectivismo, de uma relatividade que vai da couve à alface, do casamento ao divórcio, no espaço de segundos.
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