sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Salvar o essencial

Desde que comecei a ver cinema sempre tive um fascínio especial por filmes em que as suas personagens se encontrassem em espaços confinados, fossem eles um hotel no meio da tempestade, uma ilha deserta, uma sala de estar, um caixão, um barco, etc. Duas coisas me agradavam sobretudo: a forma como a tensão era mais facilmente construída (e a acção concentrada) em função dessa compressão espacial; e depois, essa espécie de colocação do espectador no lugar de Deus ou cientista de bata que observa e faz experiências com ratinhos no seu laboratório. Por estas razões é natural pois que o Motel da família Bates, a janela de James Stewart em "Rear Window" ou as salas de "Rope" ou "Dial M For Murder" façam parte do meu desconforto confortável hitchcokiano.



A juntar a estas está o barco salva-vidas de "Lifeboat", um dos filmes do período de guerra de Hitchcock. Revendo-o, não é que me tenha afastado das razões que escrevi acima. O filme possui essa tensão, além da situação alegórica de personagens em tempos de guerra (o que desagradou aliás Steinbeck, um dos escritores do projecto). Contudo, a chegada das séries de televisão ou a pirotecnia do cinema contemporâneo mainstream deixam à mostra outra qualidade de "Lifeboat", e, porque não dizê-lo, dos tais filmes passados em confinados espaços. É que a compressão espacial diminui a possibilidade de uma dispersão no espaço: esse "suster" da respiração implica estar ali naquele espaço, mais tempo, com aquelas pessoas, como quem prefere conviver num jantar em casa, em vez de ir ao restaurante.

O problema com "Lifeboat" foi aliás de convivências, porque Willi, a personagem de Walter Slezak, o alemão, responsável pelo naufrágio inicial do barco em que seguiam aquelas personagens (e portanto "autor" daquela situação de sobrevivência a partir do qual o filme arranca) não devia ser representado como alguém heróico, ou mesmo, razoável. Um carrasco ao mesmo nível da sua vítima? Nem pensar. Mas Hitchcock não queria tanto dizer que as vítimas estavam ali e os maus acolá. Era mais uma questão de auscultar o procedimento humano numa situação extrema de sobrevivência e a forma como, nessas ocasiões, as dualidades - bom/mau ou material/imaterial - se esbatiam. E aqui reside o paradoxo mais rico de "Lifeboat". Hitchcock é por natureza o realizador dos objectos - os anéis, as algemas, as facas, as tesouras, os copos de leite, a lista é interminável. E aqui, esses objectos sendo determinantes - lembro o papel da bússola que se faz passar por um relógio, a faca que amputa Gus, o álcool que anestesia Gus, a pulseira de Connie que servirá de isco para peixe; já para não falar da água e da comida) - vão perdendo importância à medida que avançamos para o essencial da sobrevivência: a comida acaba, a garrafa da água parte-se, e Connie, a mais materialista de todas aquelas personagens, aprende o sentido do despojamento, perdendo ao longo do filme a sua câmara de filmar, a sua máquina de escrever, a sua pulseira de brilhantes.

Essa perda da instância materialista ilustra bem o interesse dramático de "Lifeboat", com as suas personagens a despirem-se progressivamente: de preconceitos, de roupas, ficando apenas com o passado, uma sede e a vontade de continuar a viver. Esse essencial permanece vivo no filme e transmite ao espectador de 2017, tantos anos depois, algo daquilo a que podíamos qualificar como essencial. Algo que pouco muda quando mudamos da arte para a realidade, parece-me.


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