segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Polaroid #1

Foi ter com o amigo. Não sabia bem se ainda o era, mas tinha na cabeça aqueles dias em que se vestiam com muita cor e carregavam câmara, tripé e acessórios por estradas cheias de buracos. Uma vez ajudou-o a levantar-se pois na ânsia de chegar a tempo tinha posto mal o pé e caído no asfalto, um buraco na sola das botas de couro, um vexame, um coxear ligeiro durante semanas. Quase sempre chegavam em cima da hora, pé ante pé, pelas traseiras do olival, pela parte da frente do museu, pela tábua mais fraca do barco prestes a sair para a faina. Era um tempo de alucinações, tudo a acontecer, a película nunca chegava e os planos duravam, douravam na montagem. E depois era aquele natural acender no ecrã, da projecção tão escura, olhos tão atentos e fundos, sem um respirar que fosse. As senhoras gordas e de pele tisnada açoitavam as árvores e cantavam-se coisas de assustar os grilos e as couves. Ou o menino Jesus apostado em prosperar num quadro brilhante, uma nuca também ela reluzente a espreitar, um passo furtivo no corredor principal.

Mas, há que dizê-lo, o principal eram as casas. A forma como estes dois homens as filmavam traziam à arquitectura um tiro, uma velocidade de partir o horizonte. Eram dignas as casas, mesmo na sua podridão. Às vezes passavam horas debaixo delas como se fossem jaulas e arrancavam-lhes as histórias que tinham entranhadas nas paredes, nas frinchas das portas, nas rachas cozidas pelo frio. Prédios que o tempo havia desgastado o amarelo em creme acinzentado. Os barquinhos que passavam perto deles nem olhavam para cima, só viam o lodo e o verdete do cais a coroar as habitações. Não valia a pena filmar o rio, as pessoas que viviam nesses prédios à beira deles faziam-no diariamente e prezavam muito o rio que traziam nos olhos, não valia a pena mostrá-lo em pobres imagens, numa sala tão seca, a esse rio farsante que era o vizinho mais querido que alguma tinham tido. Entretanto os dois amigos tinham passado todos estes filmes e já há muito que não punham o pé no mesmo caminho ou enchiam um copo de vinho na mesma sala. Talvez tudo se tivesse devido a uma enorme tempestade em que cada um se molhou para seu lado. Ou, quem sabe, o fim do cinema que lhes fez ganhar pança e roupas largas de velho. Tinham passado quê, vinte anos? Talvez mais, pouco importa. 

O que realmente importa, o principal, eram as casas de cada um. Nelas se chamaram pelo telefone, seriam amigos ainda (?), e marcaram na ponte D. Luís para daí a 3 dias. Nesses dias de espera, o primeiro, ansioso, passava o tempo em torno da janela a reparar nos gatos a dormir no quintal, enroscados uns aos outros, numa bola, por causa do frio. Quando chegou o dia, levantou-se muito cedo, fez a higiene matinal e vestiu-se. Uma camisa azul às riscas roxas, umas calças de flanela castanhas claras e um cinto de couro luzidio. Colocou os seus óculos de massa, grossos e habituais, e um barrete da cor das calças. As calças talvez estivessem um tanto puxadas para cima, para a zona do umbigo, mas caramba, tinha saudades. Fez o caminho todo a pé até à ponte, também não era muito. Mal chegou viu o amigo. Aproximou-se dele e encostaram-se ambos, ainda sem trocarem palavra, a um dos suportes laterais do tabuleiro. Estava um dia cinzento e a ponte, enferrujada, desenhava uma valente cruz violeta por detrás dos dois amigos. Seriam amigos? Essa cruz negava o horizonte feito monte de casas ao longe, um morro com vista para o rio sereno. Este rio era o rio daquele avolumar de gentes a acontecer num desenho como aquele que agora assistia a este encontro, um desenho assinado pelo lápis arquitectural da cidade.

O amigo, que talvez ainda o fosse, vestia calça escura, quase preta, um casaco castanho-escuro, muito largo, e um chapéu da mesma cor. O primeiro, o da camisa às riscas, estava de costas para o morro, mãos junto à cintura. Na mão direita faiscava o brilho de uma aliança. Olhava o amigo, curioso. O outro, de costas ligeiramente curvadas, não encarava o seu amigo. Olhava antes para baixo, para o rio, mão direita mergulhada no bolso e o rosto na penumbra.

Então, o primeiro, o que sempre escolhia os planos e dizia as palavras “acção” e “corta”, enfrentando o amigo, fez-lhe uma pergunta. Ao que o outro respondeu, a medo. E depois o gelo passou, o rio parou e conversaram toda a tarde. 


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