Em que capítulo havíamos ficado da novela: "Odiar o homem, amar o cinema" protagonizado por Albert Serra? Ah sim, no sangue virginal das vítimas de Casanova e no sangue alimentício de Drácula. Aqui, além da deambulação metafísica como tema que já vem do início da sua carreira, havia esta coisa da sedução, de Serra piscar o olhar sedutor do cinema de autor por via destes conquistadores da carne e da mente. Agora - será a maturidade que chega? - o sangue parou e mais... gangrenou.
"La mort de Louis XIV" procura assim, tarefa mais complicada, buscar a sedução na (quase) pura imobilidade. O rei morre aos poucos, Léaud que havíamos visto "nascer" no cinema, morre agora nele. Morte do cinema prêt-à-porter e mais, basta lembrar a agitação do corpo e da palavra de Doinel no cinema de Truffaut, para percebermos a dimensão da catástrofe que Serra propõe filmar. Um corpo que já não corre e vai perdendo as palavras. Morte do cinema moderno prêt-à-porter.
Falava de tarefa complicada pois é o espectador que atentará no desligar progressivo do ícone real, reactivando ele os seus sensores no que diz respeito à cor, à composição, às texturas dos tecidos sobretudo do quarto do rei, até à audição nessas palavras dos criados e do próprio súbdito que passam da plena voz ao murmúrio.
E ainda dois aspectos fundamentais. O primeiro, o humor. A corte como um sistema de burocracias a funcionar no espaço de centímetros (um dá de comer, o outro enche o copo, o outro ajeita a almofada, etc.) e a negação, até ao último suspiro do rei, de que este possa não vir a recuperar subitamente. As palmas até ao fim. Em segundo lugar, a tal questão de uma suposta maturidade de Serra. "La mort de Louis XIV" seduz no ocaso, indirectamente, procurando antes usar a câmara como testemunho de um corpo em falência, de uma presença que se extingue, de um tempo sem trejeitos que se escoa.
O fim de Léaud , de um rei, de um cinema, de todo o cinema, tudo isto por certo. Mas o que faz de "La mort de Louis XIV" o melhor filme de Albert Serra até à data é a compreensão que um fim precisa de uma presença. Uma presença até que o tempo finde. E esse acto, em todo o seu esplendor, é aquilo que há de mais justo e de menos sedutor no filme.
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