sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Quando um copo conhece o chão,
partindo-se, não há como não pensar
no desprezo do solo, no cristal da liberdade,
no etéreo peso da humilhação

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Não suportava que lhe viessem falar de amores
quebrados, grandes dilúvios sentimentais.
Com ele ou é ou Noé.

La la la


Agora que com Trump a época la la la abriu oficialmente as hostilidades na América importa pensar por um outro ângulo a mais que repisada mutação do cinema mainstream americano. A crítica ao establishment mantém-se, a desejo de evasão é uma constante e pode subir de tom caso Donald comece de facto a cumprir muitas das coisas que disse e o seu proteccionismo começar a soprar o castelo de cartas das relações internacionais. A ver vamos. Mas ao constatar aquilo que os "modestos" 30 milhões do orçamento fizeram para construir este romance em tempos de dificuldades concorrenciais e luta pelo sonho do grande "american way of life" que é o mundo la la, o "La La Land", não pude deixar de pensar naquela velhinha máxima da suposta invisibilidade técnica no cinema clássico americano e da possibilidade de imersão num mundo. Pois bem, me dirão que isso não se aplica assim ao musical (ou mesmo à sua tentativa de reanimação). E é verdade, é até o seu contrário. O musical quebra essa invisibilidade, quer tecnicamente, quer no que diz respeito a um mundo chamemos-lhe "realista".

Se isto assim é, então parece-me que o paradoxo de um filme como "La La Land" pode assim ser desenhado. O onirismo, a fantasiam que marcavam os musicais de outrora, estabeleciam um corte epistemológico com o real e por isso eram considerados mundos à parte. Assim, seguindo as lições do género, o filme procura, pelo uso da cor, das canções, de uma câmara dançante, ou através dos aborrecidos dilemas das personagens de Ryan Gosling e Emma Stone cavar um fosso com o real, instaurando-o no território do maravilhoso musical. Contudo, eles continuam a dizer-nos as mesmas coisas que aponta um filme crítico do sistema de Hollywood como é "Maps to the Stars", de David Cronenberg, por exemplo. Ou seja, em certo sentido, "La La Land" procura escapar ao realismo, mas na forma como Gosling e Stone serão sempre Gosling e Stone - e não aquele casalinho de personagens indefeso e iludido que procuram sem sucesso representar, com aqueles valores e aspirações -, tal permite ao filme documentar o lado de cá da câmara. Um filme que se transforma num testemunho, ainda que involuntário, do brilho da máquina dos sonhos e seus habitantes. Isto é, "La La Land" é um filme extremamente realista na forma como mostra um real que é cheio de "irrealidade". 

Não é porque a personagem de Emma Stone, Mia, é aspirante a actriz e vai a castings, ou por Damien Chazelle filmar cenas em que há rodagens a acontecer no background que "La La Land" é meta-cinematográfico. Ele é-o na medida em que o mainstream hollywoodiano se torna cada vez incapaz de falar de outra coisa a não ser de si próprio, tornando-se por definição e essência meta-cinematográfico. Pormenores de adereços, episódios dramáticos, inserção de estrelas da música ou do social, a construção das personagens com os seus valores. Tudo isto são elementos que muitas vezes são fora do mundo que se pretendia filmar, antes pertencendo ao mundo que pega nas câmaras. 

Sabemos que Hollywood na sua história nunca foi propriamente realista, e que vários detalhes deixavam mais à mostra do que outros (penso no retrato do outro, estrangeiro) essa displicência. No entanto, havia um fundo de verdade no que dizia respeito à heroicidade, ao sacrifício, à grandeza no enfrentar do destino. Que outra coisa foi o cinema de Lang, Ford ou Peckinpah se não isso? A diferença entre o cinema americano dos grandes estúdios e o de hoje está no encolhimento dessa noção de verdade (mais do que de realismo). Dá a sensação que estamos hoje diante de um pesado espelho que é a forma que o cinema mainstream parece poder assumir neste momento. Um espelho que apenas vê realizadores, actores, egos, luxos e episódios vãos, cada vez com menos histórias para encaixar neste circuito glamoroso. Mas o mais perturbador é que este é um espelho disfarçado de janela. Isto é, quem faz impõe o que deve ser e parecer. E o que deve ser e parecer? O que é que nesse espelho performativo há para ver? Por enquanto nada: la la la.

A mesa

põe a mesa
come à mesa
levanta a mesa
trabalha à mesa

desmanivela-a 
desce 
é cama

faz a cama
abre a cama
brinca na cama
dorme na cama

desmanivela-a 
desce mais
é caixão

entaipa o caixão
forra o caixão
entra no caixão
fecha o caixão

era a brincar
era a brincar

manivela-o
sobe
é cama

manivela-o
sobe
é mesa

põe os cotovelos na mesa

Alexandre O'Neill

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

"La mort de Louis XIV" de Albert Serra


Em que capítulo havíamos ficado da novela: "Odiar o homem, amar o cinema" protagonizado por Albert Serra? Ah sim, no sangue virginal das vítimas de Casanova e no sangue alimentício de Drácula. Aqui, além da deambulação metafísica como tema que já vem do início da sua carreira, havia esta coisa da sedução, de Serra piscar o olhar sedutor do cinema de autor por via destes conquistadores da carne e da mente. Agora - será a maturidade que chega? - o sangue parou e mais... gangrenou. 

"La mort de Louis XIV" procura assim, tarefa mais complicada, buscar a sedução na (quase) pura imobilidade. O rei morre aos poucos, Léaud que havíamos visto "nascer" no cinema, morre agora nele. Morte do cinema prêt-à-porter e mais, basta lembrar a agitação do corpo e da palavra de Doinel no cinema de Truffaut, para percebermos a dimensão da catástrofe que Serra propõe filmar. Um corpo que já não corre e vai perdendo as palavras. Morte do cinema moderno prêt-à-porter.

Falava de tarefa complicada pois é o espectador que atentará no desligar progressivo do ícone real, reactivando ele os seus sensores no que diz respeito à cor, à composição, às texturas dos tecidos sobretudo do quarto do rei, até à audição nessas palavras dos criados e do próprio súbdito que passam da plena voz ao murmúrio.

E ainda dois aspectos fundamentais. O primeiro, o humor. A corte como um sistema de burocracias a funcionar no espaço de centímetros (um dá de comer, o outro enche o copo, o outro ajeita a almofada, etc.) e a negação, até ao último suspiro do rei, de que este possa não vir a recuperar subitamente. As palmas até ao fim. Em segundo lugar, a tal questão de uma suposta maturidade de Serra. "La mort de Louis XIV" seduz no ocaso, indirectamente, procurando antes usar a câmara como testemunho de um corpo em falência, de uma presença que se extingue, de um tempo sem trejeitos que se escoa. 

O fim de Léaud , de um rei, de um cinema, de todo o cinema, tudo isto por certo. Mas o que faz de "La mort de Louis XIV" o melhor filme de Albert Serra até à data é a compreensão que um fim precisa de uma presença. Uma presença até que o tempo finde. E esse acto, em todo o seu esplendor, é aquilo que há de mais justo e de menos sedutor no filme.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Polaroid #1

Foi ter com o amigo. Não sabia bem se ainda o era, mas tinha na cabeça aqueles dias em que se vestiam com muita cor e carregavam câmara, tripé e acessórios por estradas cheias de buracos. Uma vez ajudou-o a levantar-se pois na ânsia de chegar a tempo tinha posto mal o pé e caído no asfalto, um buraco na sola das botas de couro, um vexame, um coxear ligeiro durante semanas. Quase sempre chegavam em cima da hora, pé ante pé, pelas traseiras do olival, pela parte da frente do museu, pela tábua mais fraca do barco prestes a sair para a faina. Era um tempo de alucinações, tudo a acontecer, a película nunca chegava e os planos duravam, douravam na montagem. E depois era aquele natural acender no ecrã, da projecção tão escura, olhos tão atentos e fundos, sem um respirar que fosse. As senhoras gordas e de pele tisnada açoitavam as árvores e cantavam-se coisas de assustar os grilos e as couves. Ou o menino Jesus apostado em prosperar num quadro brilhante, uma nuca também ela reluzente a espreitar, um passo furtivo no corredor principal.

Mas, há que dizê-lo, o principal eram as casas. A forma como estes dois homens as filmavam traziam à arquitectura um tiro, uma velocidade de partir o horizonte. Eram dignas as casas, mesmo na sua podridão. Às vezes passavam horas debaixo delas como se fossem jaulas e arrancavam-lhes as histórias que tinham entranhadas nas paredes, nas frinchas das portas, nas rachas cozidas pelo frio. Prédios que o tempo havia desgastado o amarelo em creme acinzentado. Os barquinhos que passavam perto deles nem olhavam para cima, só viam o lodo e o verdete do cais a coroar as habitações. Não valia a pena filmar o rio, as pessoas que viviam nesses prédios à beira deles faziam-no diariamente e prezavam muito o rio que traziam nos olhos, não valia a pena mostrá-lo em pobres imagens, numa sala tão seca, a esse rio farsante que era o vizinho mais querido que alguma tinham tido. Entretanto os dois amigos tinham passado todos estes filmes e já há muito que não punham o pé no mesmo caminho ou enchiam um copo de vinho na mesma sala. Talvez tudo se tivesse devido a uma enorme tempestade em que cada um se molhou para seu lado. Ou, quem sabe, o fim do cinema que lhes fez ganhar pança e roupas largas de velho. Tinham passado quê, vinte anos? Talvez mais, pouco importa. 

O que realmente importa, o principal, eram as casas de cada um. Nelas se chamaram pelo telefone, seriam amigos ainda (?), e marcaram na ponte D. Luís para daí a 3 dias. Nesses dias de espera, o primeiro, ansioso, passava o tempo em torno da janela a reparar nos gatos a dormir no quintal, enroscados uns aos outros, numa bola, por causa do frio. Quando chegou o dia, levantou-se muito cedo, fez a higiene matinal e vestiu-se. Uma camisa azul às riscas roxas, umas calças de flanela castanhas claras e um cinto de couro luzidio. Colocou os seus óculos de massa, grossos e habituais, e um barrete da cor das calças. As calças talvez estivessem um tanto puxadas para cima, para a zona do umbigo, mas caramba, tinha saudades. Fez o caminho todo a pé até à ponte, também não era muito. Mal chegou viu o amigo. Aproximou-se dele e encostaram-se ambos, ainda sem trocarem palavra, a um dos suportes laterais do tabuleiro. Estava um dia cinzento e a ponte, enferrujada, desenhava uma valente cruz violeta por detrás dos dois amigos. Seriam amigos? Essa cruz negava o horizonte feito monte de casas ao longe, um morro com vista para o rio sereno. Este rio era o rio daquele avolumar de gentes a acontecer num desenho como aquele que agora assistia a este encontro, um desenho assinado pelo lápis arquitectural da cidade.

O amigo, que talvez ainda o fosse, vestia calça escura, quase preta, um casaco castanho-escuro, muito largo, e um chapéu da mesma cor. O primeiro, o da camisa às riscas, estava de costas para o morro, mãos junto à cintura. Na mão direita faiscava o brilho de uma aliança. Olhava o amigo, curioso. O outro, de costas ligeiramente curvadas, não encarava o seu amigo. Olhava antes para baixo, para o rio, mão direita mergulhada no bolso e o rosto na penumbra.

Então, o primeiro, o que sempre escolhia os planos e dizia as palavras “acção” e “corta”, enfrentando o amigo, fez-lhe uma pergunta. Ao que o outro respondeu, a medo. E depois o gelo passou, o rio parou e conversaram toda a tarde. 


domingo, 22 de janeiro de 2017

Novo número da Aniki


Já está cá fora mais uma edição da revista Aniki : Revista Portuguesa da Imagem em Movimento. A primeira de duas edições deste seu quarto ano de existência tem um dossier muito interessante dedicado ao tema "Paisagem e Cinema". Puxando a brasa à minha sardinha, enquanto editor convidado da secção de entrevistas para este e para os próximos 3 números, gostava de destacar a excelente entrevista que o José Bértolo e a Susana Nascimento Duarte fizeram ao grande James Benning.

Num registo mais leve e modesto já tinha aqui deixado também há uns tempos a conversa que eu e o walshiano Luís Mendonça tínhamos tido com o realizador de "13 Lakes".

CinEd - European Cinema Education for Youth


No ano passado a associação Os Filhos de Lumière embarcou numa aventura chamada CinEd que se destina a congregar várias instituições europeias com trabalho na área da formação dos públicos jovens através do cinema. O primeiro ano teve a participação de seis países - Portugal, Espanha, França, Itália, Roménia, Bulgária - ao qual se juntaram recentemente mais dois, a República Checa e a Finlândia. A ideia foi escolher dois filmes de cada país e elaborar um caderno pedagógico que servisse de instrumento da trabalho para orientar os professores de todos os países a abordar os filmes em questão com os seus respectivos alunos. 

Foi com muito prazer que aceitei então o convite para escrever esse dito caderno sobre um filme de que gosto muito, "O Sangue" de Pedro Costa. O resultado pode ser lido aqui. O segundo filme português escolhido para mostrar aos jovens por essa Europa fora foi o também muito belo "Uma Pedra no Bolso" do Joaquim Pinto. O texto que ficou a cargo da pena de Francisco Valente deve poder ser acessado muito em breve.

Entretanto, dia 27 começa a apresentação pública do projecto através de um ciclo de projecção-conversa à volta dos filmes da colecção CinEd. Estas terão lugar na Cinemateca Portuguesa e no Cinema Ideal. O primeiro filme a ser mostrado é "Pierrot le Fou" de Jean-Luc Godard. Apareçam.

sábado, 21 de janeiro de 2017

As cuequinhas de Tallulah Bankhead


There was this story sidelight: Bankhead eschewed undergarments, and freely exposed her private parts. Some people, including Slezak, were offended. "In order to step into the boat we had to go over a little ladder", Zlezak recalled. "The first day she lifted her skirt to under her arms  - with nothing underneath. She carried on that tired joke for about fifteen weeks, while I was on the picture. Every day, three, four, or five days, she showed she wasn't wearing panties. Maybe I'm a prude, but I don't like vulgar women."

Not Hitchcock: One day, according to Cronyn a visiting lady journalist from a women's magazine took umbrage at Bankhead's exhibitionism, and complained to the publicity department. The publicists pressed the issue with production manager Ben Silvey, who passed the buck to Hitchcock. Joseph Cotten vouched for what happened next: he was visiting the set when he noticed cameramen Glen MacWilliams slide over to Hitchcock and whisper that whenever Bankhead spread her legs, the shot was ruined.

The director lifted up his stomach, stuck out his bottom lip, and pronounced loud enough for everyone to hear, "This is not for me to handle. We shall call the hairdresser."

"Alfred Hitchcock - A Life in Darkness and Light", de Patrick McGilligan

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Salvar o essencial

Desde que comecei a ver cinema sempre tive um fascínio especial por filmes em que as suas personagens se encontrassem em espaços confinados, fossem eles um hotel no meio da tempestade, uma ilha deserta, uma sala de estar, um caixão, um barco, etc. Duas coisas me agradavam sobretudo: a forma como a tensão era mais facilmente construída (e a acção concentrada) em função dessa compressão espacial; e depois, essa espécie de colocação do espectador no lugar de Deus ou cientista de bata que observa e faz experiências com ratinhos no seu laboratório. Por estas razões é natural pois que o Motel da família Bates, a janela de James Stewart em "Rear Window" ou as salas de "Rope" ou "Dial M For Murder" façam parte do meu desconforto confortável hitchcokiano.



A juntar a estas está o barco salva-vidas de "Lifeboat", um dos filmes do período de guerra de Hitchcock. Revendo-o, não é que me tenha afastado das razões que escrevi acima. O filme possui essa tensão, além da situação alegórica de personagens em tempos de guerra (o que desagradou aliás Steinbeck, um dos escritores do projecto). Contudo, a chegada das séries de televisão ou a pirotecnia do cinema contemporâneo mainstream deixam à mostra outra qualidade de "Lifeboat", e, porque não dizê-lo, dos tais filmes passados em confinados espaços. É que a compressão espacial diminui a possibilidade de uma dispersão no espaço: esse "suster" da respiração implica estar ali naquele espaço, mais tempo, com aquelas pessoas, como quem prefere conviver num jantar em casa, em vez de ir ao restaurante.

O problema com "Lifeboat" foi aliás de convivências, porque Willi, a personagem de Walter Slezak, o alemão, responsável pelo naufrágio inicial do barco em que seguiam aquelas personagens (e portanto "autor" daquela situação de sobrevivência a partir do qual o filme arranca) não devia ser representado como alguém heróico, ou mesmo, razoável. Um carrasco ao mesmo nível da sua vítima? Nem pensar. Mas Hitchcock não queria tanto dizer que as vítimas estavam ali e os maus acolá. Era mais uma questão de auscultar o procedimento humano numa situação extrema de sobrevivência e a forma como, nessas ocasiões, as dualidades - bom/mau ou material/imaterial - se esbatiam. E aqui reside o paradoxo mais rico de "Lifeboat". Hitchcock é por natureza o realizador dos objectos - os anéis, as algemas, as facas, as tesouras, os copos de leite, a lista é interminável. E aqui, esses objectos sendo determinantes - lembro o papel da bússola que se faz passar por um relógio, a faca que amputa Gus, o álcool que anestesia Gus, a pulseira de Connie que servirá de isco para peixe; já para não falar da água e da comida) - vão perdendo importância à medida que avançamos para o essencial da sobrevivência: a comida acaba, a garrafa da água parte-se, e Connie, a mais materialista de todas aquelas personagens, aprende o sentido do despojamento, perdendo ao longo do filme a sua câmara de filmar, a sua máquina de escrever, a sua pulseira de brilhantes.

Essa perda da instância materialista ilustra bem o interesse dramático de "Lifeboat", com as suas personagens a despirem-se progressivamente: de preconceitos, de roupas, ficando apenas com o passado, uma sede e a vontade de continuar a viver. Esse essencial permanece vivo no filme e transmite ao espectador de 2017, tantos anos depois, algo daquilo a que podíamos qualificar como essencial. Algo que pouco muda quando mudamos da arte para a realidade, parece-me.


Um livro é um espelho

Um livro é um espelho: se um macaco nele se mira não é, evidentemente, a imagem de um apóstolo a que aparece.

in "Aforismos"- Lichtenberg

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Escrevo na intensidade do vento, contra as árvores que sangram, contra aquele ponto do éter com aroma a eternidade. Escrevo pela exclamação de um povo, em letras parvas, no caminho de uma acidentada língua, língua de domingo intransitada. Escrevo esparramado numa vírgula, esquilo gramatical de Outono, fruto de adjectivo incomestível. Escrevo como quem coça os dedos, como quem tem dó da passividade e se acomoda na sombra do fazer. Escrevo por dá cá aquela palha, feito berloque esquecido numa cómoda, apaixonado pelo pó e pelo teu pescoço felino. Escrevo como uma caça campestre ao esquecimento ou uma manada de passarame preso ao tempo da degustação das cerejas. Escrevo nos buracos da terra: um arado de palavras contra o podre e o desperdício. Escrevo como funcionário de frutaria, pesando o doce e o amargo, o verde e o maduro. Escrevo como quem faz a guerra e procura beijar os feridos. Escrevo como quem quer celebrar o silêncio.

Lucky Star - Cineclube de Braga

                             

Quem anda atento ao panorama da programação cinematográfica nacional já deve concerteza ter reparado no excelente trabalho que o Cineclube de Braga tem vindo a apresentar já há mais de um ano. O projecto Lucky Star, com a benção de Frank Borzage, propõe-se dar a ver um filme todas as 3ª feiras à noite no Estaleiro Cultural de Velha a Branca. Por detrás deste projecto estão duas das pessoas que actualmente melhor escrevem sobre cinema no país, um deles inclusive tendo já colaborado com o site À pala de Walsh. Falo de João Palhares, cujos textos podem ler quer no site do Lucky Star, quer no seu blogue, Cine Resort, e de José Oliveira, também cineasta, programador e crítico que há já vários anos mantém o seu indispensável blogue Raging Bull.

Há uns meses tinha escrito sobre um projecto parecido em Famalicão, o "Close Up- Observatório Cinema" dirigido pelo programador Vítor Ribeiro. Quando digo parecido não falo de estruturas de programação ou conteúdos, e sim porque ambos parecem prosseguir dois objectivos que muito me sensibilizam. O primeiro, o de descentralização da oferta cinematográfica de Lisboa, lutando pela importância que o cinema deve ter em outras cidades do país. O segundo, a luta contra a "supermercadização" do cinema, trabalhando com eventos de dimensões "humanas"que procuram colocar os filmes e os espectadores no centro da equação. Mostrar filmes para ser vistos e discutidos por pessoas (não consumidores) e levar as pessoas até aos filmes.

No caso do Lucky Star, embora não tenha tido ainda a oportunidade de assistir a uma sessão in locu (algo que espero poder fazer em breve), posso destacar já outra característica. Além das sessões organizadas, a disponibilização dos textos contextualizadores e críticos no seu site, assim como a junção dos vídeos de apresentação, permitem que a actividade de programação se expanda para o online, atingindo um número maior de pessoas. A cinefilia sem fronteiras mas dotada de um pensamento de estrutura.

Passem também no seu canal de youtube, onde estão compilados estes vídeos, pérolas instantâneas para qualquer cinéfilo, nos quais nomes como Tag Galhagher, Craig Keller, Adriano Aprà ou Pierre Rissient apresentam e falam sobre os filmes escolhidos. E nem é preciso falar aqui dos filmes que compõe a programação, basta espreitar só o programa de Janeiro, ali em cima.

Do mundo para Braga, de Braga para o mundo: how lucky (star) are we?

domingo, 15 de janeiro de 2017

Primeiras palas de 2017


sábado, 14 de janeiro de 2017

Bitchy

Judá escolheu para Er, seu primogénito, uma mulher chamada Tamar. Er, primogénito de Judá, desagradou ao SENHOR e Ele feriu-o de morte.

Gn 38: 6-7 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

"Le Fils de Joseph" de Eugène Green



Não sou um conhecedor dos filmes de Eugène Green. Até agora tinha apenas visto a sua segunda longa "Le monde vivant" e dela apenas conservava a ténue memória de planos de pernas e de uma espada medieval nuns jeans. Um pouco como as imagens que guardava da primeira vez que vi "Lancelot du Lac" de Robert Bresson. Curiosamente, dessa lembrança pode extrair-se já dois traços fundamentais deste magnífico "Le Fils de Joseph". São eles a câmara sinédoque do cineasta e o gosto profanatório da História. Neste drama cómico de um jovem que procura descobrir qual a identidade do seu pai, continua esse apreço pelos detalhes expandidos que já mostram o todo - relembro aqueles planos que mostram as franjas do canapé e as suas molas, debaixo do qual o jovem Vincent espreita os flirts do seu pai biológico. Continua ainda o rigor dos enquadramentos simétricos do francês e uma preferência pela representação de tom entre o solene e o frontal. Não é a muito custo que podemos inserir estes elementos numa visão classicista da história da imagem. Em "Le Fils de Joseph" desta estética implica deve poder extrair-se também um ética de frontalidade na franqueza das personagens: aqui não existem pessoas que não digam o que pensam e da forma exacta como o pensam. Apenso a esta rectidão, Green junta a sua outra característica, a visão descentrada, profanada, de alguns episódios bíblicos. O realizador está a contar-nos a continuidade mítica de debaixo do canapé, de debaixo de qualquer reverência ou mesmo explicação psicanalítica. Como identificar os Josés, Marias, Abraãos que passeiam no Louvre, nos jardins de Luxemburgo, que escapam para o campo da Normandia como se fossem para o Egipto? Sem que a comparação tenha propósitos rigorosos, o que importa reter do gesto desta obra parece ser a possibilidade (o dever) de continuar a História inserido-a, a todo o tempo, na nossa história.

Portanto,"Le Fils de Joseph" não é reparador nem apela à reescrita. É sim um filme de evocação de uma acessibilidade que permita lançar mão de noções abertas de paternidade, de desmistificação do peso solene da literatura e do teatro, de inspiração latente das imagens que nos invocam a todo o tempo uma salvação e um sacrifício, como aquela que obceca o jovem filho que decide não sacrificar um pai, antes recriá-lo: o "Sacrifício de Isaac" de Caravaggio.

O sabor da faneca

O pai, sabia, deitava-se na cama de palha e de escassez,
já ele, emprestava o lombo ao aço indestrutível.
Da sua nave, desde pequeno que podia ver a mama da moça,
o futuro dourado com dentes podres no horizonte da fábula,
descarregar seus fluidos electrónicos,
e navegar sem parceiro no rio dos mortos.
Nas primeiras noites sentiu-se quente e capaz,
gatinho ao serviço, de miar audaz.
Nas segundas noites os ossos dos pés,
quebraram-se, caules de junquilho.
Nas terceiras noites já chovia suavemente na almofada,
e já nem festejava os golos do Manchester.
O ecrã ainda reluzia como eterna joia,
e nele procurava uma qualquer boia.

Os cais estava frios quando os pais neles punham os pés,
o que fazer com tão pouco?
As camas estão a ferver quando os filhos nelas jazem,
o que fazer com tão tanto?

Havia que rezar pedindo o cataclismo, a miséria, a cólera
como esperados frutos, esperadas flores.
O martelo do dia seguinte revolvia as vítreas entranhas,
acompanhava com um vinho de borgonha, uma arca de
prateadas delícias e o sopro gangrenado de um andar imaginado.

Oh, delicados impacientes deste mundo,
só o tempo vos trará o pleno sabor da faneca.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Locked-in syndrome



Quando ali em baixo postei o "Breakdown", um dos episódios realizados pelo Hitchcock para a primeira season da série dele para a TV esqueci-me de duas coisas. A primeira de vos dizer pelo amor "dedeus" de arranjar uma versão decente. Segundo de vos explicar porque tiro especial prazer deste episódio. Joseph Cotten já me dá prazer que chegue, e então se estiver assim quietinho (quietinho não, padecendo, ao que parece, de um "locked-in syndrome") ainda mais. Isto porque mostra perfeitamente como o cinema metido na televisão, "those were the days," ainda podia fiar-se num  impercepítvel dedo mendinho ou numa lágrima para contar uma história. Depois porque mostra como a agitação, o frisson do suspense, nunca teve como condição essencial o movimento físico. 

The power to bind and to loose


O que mais me impressiona em "Gilgamesh", o poema da Antiga Mesopotâmia, considerado um das primeiras obras de literatura a sobreviver na nossa história, é que a sua estrutura épica, ao contrário da "Odisseia", parece sobretudo servir um propósito interior. Gilgamesh é um tirano, na cidade de Urak, e é devido à sua condição que os Deuses resolvem resgatar da pura animalidade, Enkidu, que será como um irmão para ele, um sidekick das suas aventuras. No fundo, um desdobramento de si, um reflexo que fará com que o ensimesmamento da sua posição de ditador termine em detrimento da aprendizagem que faz da condição da alteridade. É o falecimento de Enkidu, a meio de "Gilgamesh", o que faz o rei passar a temer a morte e a partir para procurar o segredo da imortalidade. Esse segredo Gilgamesh não o obtém pois ele é uma condição única presenteada pelos deuses a Utnapishtim, o sobrevivente da grande enchente que dizimou a humanidade. Mas depois deste "falhanço", Gilgamesh também não consegue o próximo objectivo, a obtenção de uma planta no meio do leito marítimo que supostamente lhe traria a juventude novamente. Ele obtém a planta mas uma serpente rouba-a da sua posse. Episódio com semelhanças ao bíblico paraíso perdido e pecado original. Esses "falhanços" contudo não perturbam o verdadeiro destino de Gilgamesh:

 The  power to bind and to loose, to be the darkness and the light of mankind. He has given you unexampled supremacy over the people, victory in battle from which no fugitive returns, in forays and assaults from which there is no going back. But do not abuse this power, deal justly with your servants in the palace, deal justly before Shamash.'

Desta forma, creio que pode dizer-se que o caminho de Gilgamesh é sobretudo interior, uma epopeia interna. Aprender a condição finita, a morte, e a importância do outro na sua alteridade, como condições para exercer aquilo que, isso sim, está à sua disposição: the  power to bind and to loose.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

30 minutos de prazer. Prazer mórbido, isto é hitchcokiano.

Alfred Hitchcock Presents - S 1 E 7 - Breakdown - Video Dailymotion

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Quando acordo às tantas da manhã, tantas são as manhãs em que não acordo. Todos os pensamentos fugidios parecem envoltos em negro manto, as consequências despem finalmente as já poucas roupas das causas, e sonho em dormir sem pesar. Às tantas da manhã, só o ladrar derramado de um cão solitário que se ouve a partir da rua fria, ou o latir da chuva num estrado trazem o suave continuar do tempoLentamente, adormeço, dou o meu corpo ao que resta da noite, confiante no 2+2 igual a anti 4.
Se te pedissem que morresses, orvalho, tu secarias?
Se te ordenassem que desses uma mão, solidão, tu vinhas?
Se te esmolassem um pão, fome, tu jejuarias?
Se te implorassem uns ramos secos, poeta, tu arderias?
If your heart is fearful throw away fear, if there is terror in it throw away terror. Take your axe in your hand and attack. He who leaves the fight unfinished is not at peace.

Gilgamesh

Yuliya Solntseva



No À pala de Walsh decidiu-se, um tanto com o meu voto de vencido, dedicar um dossier a mulheres cineastas. Apesar de não gostar muito do tema aproveitei para conhecer a obra de Yuliya Solntseva, esposa de Aleksandr Dovzhenko. Tendo várias obras co-realizadas com o marido, foi só após a abrupta morte deste que ela desabrochou como realizadora de pleno direito. O estilo é virtuoso, a imaginação fulgurante, e deixa-nos a pensar se Solntseva, com as condições ideais, não poderia ter ofuscado a obra do seu companheiro de vida. Filmes feitos como um poema de amor, a Dovzhenko, ao cinema.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Em cascata vamos lá

http://osabordacerveja.blogspot.pt/2017/01/mas-como-pode-daniel-pereira-excluir-se.html

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Inútil

Danado, existe pr'ái um ser, vocês sabem, a quem lhe foi dado existir. Espremido pelos minutos, exprime-se no círculo. A sua vida é a de um prisioneiro, a de uma liberdade tanta, a correr as nove voltas do inferno e a contar pelos dedos, pelas patas, pelas ruas e lutas, as suas quedas, a sua inutilidade. Sempre à volta, vive praticamente sem vida, mas não pratica, nem mente. Por vezes, o sol parece que brilha e lhe acerta em cheio, e nessas ocasiões anda muito direito, quase feliz: corpo para cima, muito leve, dentes de fora a carregar orgulhoso o desespero, a exibir uma energia brilhante que o frio, a maior parte das vezes, lhe retira. Nesses instantes não se importa de ser o que é, praticamente nada. Um círculo pouco prático, com pernas para se inclinar, maníaco, pelas portas, pelas paredes, pela manhã de uma tarde que é um dia de um ano interminável. Não precisava de grande coisa, quase nada, praticamente, talvez um espelho que lhe mostrasse a morte a trabalhar?

Ínfimo, existe pr’aí um ser, vocês sabem, a maior parte das vezes ninguém ouve os seus uivos salgados, berros de barro que fazem já parte do som do Inverno, como o cantar dos pássaros ou o vento alucinado. Mas eu sei que vai chegar o dia em o círculo que ele carrega vai desgastar o chão até fazer vulcão, até fazer ferida. Nesse dia, quando este ser que é praticamente nada se lançar vulcão abaixo, livre e quente, vai acontecer um milagre daqueles que ninguém acredita por serem gostosos. As entranhas da terra, incandescentes e loucas, vão recebê-lo nos braços e cuspi-lo para o éter. Nesse instante a inutilidade terá enfim cumprido o seu fim e o mundo poderá recomeçar, inerte, mudo, novamente. Vocês sabem, as estações não hão-de mudar muito por isso: os mesmos meninos correrão ensonados para a escola e os velhos continuarão no mesmo passo lento para o jardim.  

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A máscara de Bogdanovich


Há qualquer coisa de trágico na filmografia de Bogdanovich e nem vale a pena falar da sua atribulada vida sentimental. O que quero dizer é que os seus filmes parecem inadvertidamente aproximá-lo de um destino do qual se quer afastar. No caso de The Mask é difícil ser mais evidente. O caso real de Roy L. Dennis serve como drama inspirador sobre a descriminação e sobre a máscara universal de cada um. A família comunitária e motard do Dennis espelha o relativismo de um misfits among misfits. Nesta encenação de máscaras o agridoce da biografia do jovem deficiente surge o mais possível "sem máscara". E é aí, na criação da empatia ingénua com as personagens (aquele gigante gago a lembrar Bud Spencer, a Laura Dern a fazer de ceguinha, o rosto masculino de Cher e seus olhos de drogada) que Bogdanovich se rende. Ele nunca poderia entender o dilema de um misfit, pois ele é por definição um cineasta demasiado encaixado na "família". Só os anónimos espectadores podem fazer de vez em quando uma certa justiça, mostrando-lhe, por exemplo, que as imagens deste The Mask dificilmente chegariam mais longe do que a piedade.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Passagem de ano

O bebé senta na vovó
A mamã faz cú cú

A pança do tio começa a dança
tudo somado até cansa

O frango, o pato e o capão fecham os olhos à ocasião
 e a menina, p'rece qu'é parva, vem vestida à Verão

Toda a família recorda ao serão
o ano passado que s'armou em cabrão

depois passas, desejos e badaladas 
tudo à dúzia, inclusivé as estaladas

e enfim... o ano velho vira novo
não tarda tá' qui outra vez todo o povo

Isto a não ser que entretanto alguém dê à luz
nesse caso é o menino e os outros p'ró ano à porta, truz truz


domingo, 1 de janeiro de 2017

Entrevista a James Benning

James Benning é um dos cineastas mais importantes do cinema experimental contemporâneo. A sua obra estende-se por mais de 50 títulos, sendo alguns dos seus mais marcantes – inclusivamente no âmbito de um certo “cinema estrutural” – 11 x 14 (1977), One Way Boogie Woogie (1977), Landscape Suicide (1987), a sua trilogia da Califórnia [El Valley Centro (1999), Los (2001) e Sogobi (2002)], 13 Lakes (2004), Ten Skies (2004) e Stemple Pass (2012). Através destes filmes, Benning constrói uma visão crítica sobre os efeitos da cultura (em particular, da tecnologia) na paisagem. Cada plano é meticulosamente preparado – com um rigor que não trai a sua formação superior em matemática – e aqui o principal efeito especial é a duração, a respiração do tempo e do espaço. Mas engana-se quem o pensa como um puro esteta. A sua obra está atravessada por um discurso ácido, até um humor fino, que transforma a contemplação num exercício crítico que muito directamente implica o espectador. James Benning esteve em Portugal para dar uma masterclass no âmbito do colóquio international Space and Cinema, que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Aproveitámos a ocasião para entrevistar este que é um dos mais brilhantes realizadores norte-americanos no activo. Falou-se de tudo: vida, trabalho, matemática, humor, atenção, tecnologia, Chantal Akerman, Peter Hutton e até Donald Trump.