A claridade atinge as coisas com um bastão de luz, arrancando réstias de esperança a uma vida já sem dentes. Uma vida de pernas finas, os ossos a verem-se, uma vida a chupar sôfrega os acontecimentos numa qualquer esquina do presente. Insistimos todos em acordar em ontem, dobrar a espinha para chegar ao chão e colocar as luvas. Saímos de casa, partimos ou espantámos o espelho, e contamos o passo até ao ringue fabril, o ringue do ring-ring, do centro de chamadas onde no canto oposto está um suado a olhar para nós, a dizer que nos vai partir os dentes. Levanta-se, dá-nos um murro mínimo - nem seiscentos euros chega a ser - e parte-nos os dentes. Eles caiem ao chão, bem que nos avisou. Vamos ao canto, tiramos um envelope do roupão fato de trabalho e guardamos os dentes para a factura da sorte. Já está escuro, o tempo passou, a luta foi árdua, oito assaltos por dia, menos não sei quantos dentes e hoje o champagne vai ser de pacote. Copo de plástico, o líquido escorre pelos buracos inchados das gengivas e no serão haverá um filme onde uma prostituta vira rainha mas alguém vai ter de explicar a reviravolta com um intertítulo. Filme mudo: vida muda e sem dentes. Vida desdentada, a prostituir-se de boca cheia, à espera de um dia sem ringue, sem ring-ring, de um dia sem pau pau, murro nos dentes. Aqui o sol ainda não é um aquecedor e por isso resta-nos insistir nessa esperança depositada a ferros na claridade que resta, nos dentes que sobram de uma boca de palavras cada vez menos infinita.
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