Não estou certo qual foi o momento em que passei a considerar com um
certo carinho aquelas pessoas que falam em voz alta consigo próprias.
Claro que não me refiro aqueles que vão falando pela rua como se
dialogassem com um amigo de longa data. Esses, até à data, ainda não
consigo fazer-me esquecer das vergonhas e olhares alheios. Falo antes
daqueles que em momentos de actividade vão agendando para si o próximo
passo a dar. Lembrei-me disto a propósito de algumas cenas do jovem
Moretti nos seus filmes iniciais a comentar o mundo, comentando-se.
Claro que aqui há o efeito da arte e do evitar do monólogo interior, em
alguns contextos, mais aborrecido. Mas ontem, ao ir fazer um exame
médico, deparei-me com uma senhora administrativa do hospital que fazia
isto também. Juntava os papelinhos, assinava os papelinhos, dizendo em voz baixa para si:
"agora, isto vai para aqui", "agora vou falar com o dr. tal", "isto é
daqui", etc. Esta forma de agenciar os "agoras" não me pareceu nada
patológico. Exasperante por vezes, admito, se estivermos muito
apressados. Mas ao olhar a senhora pensava nessa reacção instintiva,
primitiva, de pôr um freio ao mosaico de obrigações que não se sucedem
necessariamente no tempo, mas que se acumulam como galinhas doidas.
Falar para si próprio, parecia-me ser uma forma de pôr um momentâneo
freio ao caos. Não de atrasar o fluxo das suas actividades mas de dar
viva voz à expressão "uma coisa de cada vez". Escrevo este texto e
agencio-o como um pequeno passo, num longo percurso diário. Há dias em
que deixo sair do armário do peito essa voz como extravagante filofax
portátil. Noutros dias não o faço e sinto os compromissos espirituais a
revoltarem-se com cada acção exterior que há que levar a cabo. Falar
connosco próprios pode ser, quem sabe, colocar na mesma agenda de prioridades a
loucura e o quotidiano eficiente e organizado.
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