sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

As couves

Da minha varanda pode ver-se um pequeno quintal que alguém se esqueceu de derrotar. Está entalado entre um prédio alto e anónimo e uma velha casa submissa, de paredes descascadas pelo frio, que terá resistido à uniformização urbana. Por trás do quintal ouço muitas vezes os uivos de alguns jovens a quererem manter-se vivos, gritos vindos de um campo de futebol amador no qual, hora sim, hora não, se joga com paixão, deduzo. Nesse quintal que agora observo há uma senhora de aspecto idoso e frágil que percorre todos o seus recantos. Não sei o que faz, mas sei que trabalha. Distingo uma laranjeira, um pequeno quadrado de terra escura cultivada, um caixote do lixo e outra árvore despida. É Outono. Neste espaço há também quatro folhas grandes que me parecem couves. São tão altas que quando a senhora delas se aproxima dá para perceber que têm a mesma altura. A Natureza não escolhe prioridades deste tipo. Não está sol mas é possível, tenho a certeza, quando o tempo se adequar, ficar à sombra dessas couves. À vista de todos essas plantas são a figura do desprezo de uma amálgama de outras formas e objectos que trazem àquele quintal uma suposta "riqueza" que qualquer inspirado nela desejasse distinguir. Mas basta ficar uns minutos a olhar para elas para se perceber como são elas o centro desse quintal: marcam o fim do rectângulo desterrado, inclinam-se na direcção da modesta vivenda (como que apontando a sua função de monumento fora do tempo de agora), avisam as demais árvores sobre a direcção da claridade que lhes dá vida. A senhora, que é minha vizinha mas que não passa para mim de outra planta que se move, aproxima-se das couves. Não as vai cortar. Acerca-se delas apenas como que temerosa. E, ao longe, quero crer que elas, apesar de mais jovens, contam à senhora uma história qualquer. Levam-na pela mão, grossa e sapiente, por entre os corredores de uma juventude invertida que se aproxima. Explicam-lhe as coisas, uma a uma, a origem dos sons dos carros, a altura da parede do prédio que os cerca, as reacções das pessoas quando vivem e quando falam. A senhora vira as costas às couves e percorre o quintal pelo seu limite à direita, tomando um pequeno carreiro que, estúpido como sou, me esqueci de vos descrever. Chegada ao carreiro, ajeita o casaco de malha - o cabelo continua insubmisso no lenço que o tenta apanhar -, e entra em casa. Não sei se vai voltar a sair, mas as couves continuam, como palmeiras deste pequeno oásis de pobreza, imóveis, certas do que acabaram de contar. Tenho de fechar a cortina pois devo voltar ao trabalho e elas, agora, observam-me. Não posso correr o risco em pleno dia de ser olhado desta maneira. É que para mim essas couves são a literatura.  

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