Da minha varanda pode ver-se um pequeno quintal que alguém se esqueceu
de derrotar. Está entalado entre um prédio alto e anónimo e uma velha
casa submissa, de paredes descascadas pelo frio, que terá resistido à
uniformização urbana. Por trás do quintal ouço muitas vezes os uivos de
alguns jovens a quererem manter-se vivos, gritos vindos de um campo de
futebol amador no qual, hora sim, hora não, se joga com paixão, deduzo. Nesse
quintal que agora observo há uma senhora de aspecto idoso e frágil que
percorre todos o seus recantos. Não sei o que faz, mas sei que trabalha.
Distingo uma laranjeira, um pequeno quadrado de terra escura cultivada,
um caixote do lixo e outra árvore despida. É Outono. Neste espaço há
também quatro folhas grandes que me parecem couves. São tão altas que
quando a senhora delas se aproxima dá para perceber que têm a mesma
altura. A Natureza não escolhe prioridades deste tipo. Não está sol mas é
possível, tenho a certeza, quando o tempo se adequar, ficar à sombra
dessas couves. À vista de todos essas plantas são a figura do desprezo
de uma amálgama de outras formas e objectos que trazem àquele quintal
uma suposta "riqueza" que qualquer inspirado nela desejasse distinguir.
Mas basta ficar uns minutos a olhar para elas para se perceber como são
elas o centro desse quintal: marcam o fim do rectângulo desterrado,
inclinam-se na direcção da modesta vivenda (como que apontando a sua
função de monumento fora do tempo de agora), avisam as demais árvores
sobre a direcção da claridade que lhes dá vida. A senhora, que é minha
vizinha mas que não passa para mim de outra planta que se move,
aproxima-se das couves. Não as vai cortar. Acerca-se delas apenas como
que temerosa. E, ao longe, quero crer que elas, apesar de mais jovens,
contam à senhora uma história qualquer. Levam-na pela mão, grossa e
sapiente, por entre os corredores de uma juventude invertida que se
aproxima. Explicam-lhe as coisas, uma a uma, a origem dos sons dos
carros, a altura da parede do prédio que os cerca, as reacções das
pessoas quando vivem e quando falam. A senhora vira as costas às couves e
percorre o quintal pelo seu limite à direita, tomando um pequeno
carreiro que, estúpido como sou, me esqueci de vos descrever. Chegada ao
carreiro, ajeita o casaco de malha - o cabelo continua insubmisso no
lenço que o tenta apanhar -, e entra em casa. Não sei se vai voltar a
sair, mas as couves continuam, como palmeiras deste pequeno oásis de
pobreza, imóveis, certas do que acabaram de contar. Tenho de fechar a
cortina pois devo voltar ao trabalho e elas, agora, observam-me. Não
posso correr o risco em pleno dia de ser olhado desta maneira. É que
para mim essas couves são a literatura.
Que conjunto de palavras tão bem plantado, caramba! :)
ResponderEliminarNão sei o que faz, mas sei que trabalha.
ResponderEliminar:)
ResponderEliminar