domingo, 23 de agosto de 2015

O dispositivo da eternidade




No prólogo de "História da Eternidade", volume de ensaios de Jorge Luís Borges de 1936, o argentino escreveu: Como não pude sentir que a eternidade, ansiada com amor por tantos poetas, é um artifício esplêndido que nos livra, embora de maneira fugaz, da intolerável opressão do sucessivo?

Parece haver uma certa ironia nestas palavras e no desenterrar da dimensão artificial (e anti-religiosa) da dimensão do eterno, algo que aliás se confirmará no primeiro ensaio da obra que dá nome ao título da compilação. Quer-se dizer, a fazer uma escolha entre a sucessão (a "História" do título) e a imobilidade (a "Eternidade" do título) há que ter em conta que há na eternidade algo da ordem do dispositivo que importa ter consciência. Seja ele um dispositivo filosófico nos arquétipos platónicos, seja um dispositivo religioso como na santíssima trindade com Santo Agostinho, seja um dispositivo poético como o tom rosado da ternura que Borges encontrou numa cerca que era a mesma de há trinta anos.  A estes dispositivos está, segundo ele, ligado um modelo  de "unânime eternidade" que é a nostalgia. E escreve: Na paixão, a recordação inclina-se para o intemporal. Reunimos as venturas de um passado numa única imagem; os poentes diferentemente vermelhos que vejo em cada tarde serão na lembrança um único poente. (...) Por outras palavras: o estilo do desejo é a eternidade.

Difícil não pensar no cinema debaixo deste contexto. Por um lado, o dispositivo do cinema do lado da naturalidade da sucessão de tempo, do lado oposto ao dispositivo da paragem, do eterno. Por outro lado, há algo na concepção do amor e do desejo que implica a paragem do tempo, da montagem. O cinema moderno com o seu trabalho sobre o tempo no plano, a duração, talvez tenha sido então esse momento na sucessão (na História) em que o cinema se distanciou, e, como diz Borges, se sentiu como "morto", "percebedor abstracto do mundo". E hoje, o equilíbrio da aceleração do cinema e sua fragmentação talvez esteja aqui: por uma parte, incapaz de produzir de forma tão natural dispositivos de eternidade e paixão; por outra, próximo como nunca de um fervilhar da sucessão que vê em cada modelo (de ideia, imagem, padrão) um travão autoritário ao pensamento e ao "agir sucessivo das mãos" na criação. 

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