Não me julguem pretencioso, please,
mas quando a advogada de Panahi coloca uma flor em frente à câmara do
cineasta no tablier do taxi, dedicando à gente boa do cinema, eu, não
sendo cineasta, senti-me bem, como se fosse gente do cinema. Este sentir-me bem
vem juntamente com as referências do seu último filme aos filmes piratas,
a Woody Allen, a Kurosawa, à impossibilidade de fazer filmes no Irão
sem sem "clandestinamente" numa caixa de fósforos com rodas. É assim que
quero ler Taxi, como uma carta do cineasta aos seus
pares, uma carta de impotência e desabafo ante a incapacidade de se fazer o
que se quer fazer em liberdade. E nessa carta nós já sabíamos o que lá
vem escrito, é uma confirmação. Por isso interessa menos a parte que não
é meta-cinematográfica - a oscultação em clausura através dos diálogos
encenados com passageiros de um sentir da situação actual do Irão.
Interessa menos porque a simbologia da flores, o percurso de Panahi de
paragem em paragem, o dispositivo automóvel, o próprio fazer de um filme
de um taxista que não o é, tudo isto já foi feito (e melhor feito) ali
naquelas mesmas paragens antes. Estamos assim sob o signo da influência
tornada roubo mas um roubo mais profundo, benigno. Vão-se os pneus,
vai-se o carro (e com ele, a flor), o achado não roubado da nota do
noivo, para que se possa entregar o porta moedas da senhora dos peixes. Contrapor um roubo, com a generosidade, sempre.
Um pouco à margem, penso na comparação com As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes. Se de ambos tiramos um snapshot
do país em causa a partir dos seus indivíduos (um comentário da
História através da actuação dos seus agentes individuais), ambos se
opõem em dois aspectos. O primeiro é a questão do espaço. Gomes tinha
toda a liberdade e fez a sua escolha e encenação no aberto, nas 1001
noites dos eventos nacionais que espelhavam uma situação de depressão
económica. Panahi não tinha essa liberdade e trabalhou no fechado, na
clausura para dela extrair das palavras e das pequenas acções uma
liberdade de pensamento e criação que lhe foi sonegada. O segundo
aspecto é a questão da liberdade. A necessidade de se ser pelo menos parcialmente
livre para a criação. A ausência de espaço em Panahi como dispositivo
funcional e possível acaba por pô-lo a dizer e filmar coisas que ele já
sabe e que pessoas lhe dizem para que possamos ter acesso a elas. Neste
sentido ele é, infelizmente, muito mais passível da crítica maior que
pode fazer-se a Miguel Gomes: a de uma construção artificial para se
fazer passar uma ideia. O filme português, porque goza dessa liberdade,
tem a possibilidade de expandir o campo ficção-documentário e, com ele,
investir na investigação, na encenação (até na caricatura, assumida e
corrosiva), mantendo para si e para o espectador uma vital deriva do
acaso, da caminhada. Do não se saber o que se está a fazer até que já se
sabe o que se fez. Panahi não se pode dar a esse luxo, há coisas
prementes a mostrar e esse acaso é toda ele de uma construção pouco
derivativa. Por outras palavras, o "realismo sórdido" do sistema
iraniano obriga a um argumento a mostrar a sordidez do sistema, com menos asas, mais óbvio.
E
como quem não quer a coisa, digo ainda que a cena em que a menina quer
encenar a realidade para contornar a censura - o mendigo sem mãe que
acha dinheiro deve ser o herói reparador - é um dos momentos mais soltos, inesperados e bonitos da obra de Panahi.
Sem comentários:
Enviar um comentário