Fui ontem ver finalmente Taxi de Jafar Panahi
(cujas flores, peixes e viagens sem bandeirada deixarei para breve) e de lá retiro o
"realismo sórdido" para falar de John Ford. Sabemos como a palavra
sórdido evolui (infelizmente com os nossos limites da tolerância) e que
um filme como The Grapes of Wrath sendo socialmente
explícito não é visualmente gráfico. Se no romance de Steinbeck há esse
propósito revolucionário, de construção de uma "tag of shame" sobre
culpados, o filme de Ford é muito mais sobre o pouco espaço que existe
(no plano) entre os inocentes e a construção de um espaço de combate
contra a injustiça, seja ela qual for.
Esses propósitos parecem nuances
mas produzem activamente espaços políticos de actuação emocional
diferentes. No livro de quase 500 páginas, as diferentes peripécias dos
Joad, a "banha que espirra na frigideira" em tantos locais diferentes
ante a terrível sombra de não haver em breve nada para lá meter, as
pessoas que se juntam e os membros da família que se "desmembram", o
desmembrar do próprio caminhão, fazem do livro de Steinbeck um travelling
lento de progressão para lugar nenhum seco, abrigado. Não por acaso
Ford decidiu eliminar a melhor e final imagem do livro: a pietá de Rose
of Sharon a dar de mamar o seu leite (o leite que não irá prolongar os
Joad) num estábulo, a um homem de faces encovados prestes a morrer de
fome. O filme de Ford elimina ainda essa progressão lenta e
acelera o movimento (o filme tem 125 minutos) numa espécie de máquina
abstracta que produz a fome e a injustiça social. Para Fonda,
Carradine, Darwell, "o povo" é um estado abstracto que avança por
espaços pouco distintos. Sobretudo para expor menos a circunstância
"vermelha" da luta contra os mecanismos capitalistas e mecânicos da
Grande Depressão e mais colocar em equação as vantagens e as
desvantagens do eu (Fonda-Tom que começa e acaba só na estrada) por
oposição ao nós da família, da Union, da comunidade. E a escolher um
episódio religioso para terminar o filme Ford prefere rejeitar o lamento
pessimista e divinatório do estábulo e filmar a transmutação do eu em
todos: o discurso de Fonda em que este diz à mãe que ela o poderá ver em
toda a parte (I'll be everywhere) em que existir uma injustiça.
No
final de contas talvez se possa dizer que o livro de Steinbeck se
atrela mais ao contexto e Ford mais à mecânica abstracta da reparação
heróica da injustiça. Isso faz com que hoje, mediante as diferentes
ambições (um para agora, outro para sempre), se justifique que o livro
tenha pontos que nos façam perceber o gap entre 1939 e 2015 e que o
filme perdure como hino que almeje a eternidade da luta.
Seja
como for, tenho de ser justo aqui, a concretude neste caso é um ponto de
coragem, a coragem de se ser esquecido para atingir o presente em cheio
nos tomates.
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