Numa altura em que metade de vós está esparramada na areia com o sol
apontado ao nariz e a outra metade se encontra desmaiada no sofá com a
ventoinha a fazer coreografias sobre as gotinhas de suor das vossas
testas, decidi escrever um elogio aos meus amigos. Não a todos, tenho
poucos como convém, mas aqueles que o cinema me fez descobrir. Há três
anos e uns pozinhos, uma pessoa que eu não conhecia de parte nenhuma,
mandou-me um email a saber se queria fazer parte de um projecto que
juntasse vários blogues de cinema e os reunisse num site. Site que até hoje tem o
condão de ser chamado de blog. Não vou contar como tudo se passou até se
chegar aquilo que é hoje o À pala de Walsh. Muito
menos vou falar da qualidade (ou da falta dela) do site. O ataque de
philia que me invade, tal qual homem possuído pelo espírito da Madonna em
pleno karaoke, tem só o propósito de falar do Luís, do João e do Ricardo,
que juntamente comigo, fundaram a coisa e entretanto se tornaram meus amigos. Estou-me bem borrifando para
fundações; o que queria mesmo era dizer-vos que foi a escrita de cada um
que me trouxe a sua amizade e que nela teve (tem) influência o seu estilo.
Costuma dizer-se que a boa crítica é aquela que é feita por pessoas
que usam os filmes para escrever sobre si próprios, e dar ao leitor o
modo como veem o mundo, as suas paranóias, obsessões, tiques... E como
só vou para a praia depois de amanhã aproveitava para falar um pouco
destas três pessoas através da sua escrita, correndo bem o risco de as embaraçar.
Começo pelo Luís, único que aliás conhecia de amizades intermédias entre
nós e de uma remota relação à universidade. O Luís é um gajo que pensa,
respira, vê cinema como poucas pessoas que conheço. Investigador e
curioso incansável na sua vontade de expandir o seu conhecimento
cinéfilo, pode falar de cinema desde os primeiros minutos do dia (neste
caso, da tarde) até ao deitar. Pelo meio, três filmes diários não serão
demais para a sua retina, sem nunca perder o discernimento. Já várias
vezes perdi a noção do tempo a falar com o Luís. Ao telefone,
presencialmente, seja como for, parece que existe entre nós esta espécie
de conversa interminável, que ora assume o tom do ping pong, ora é um
jogo de pares a caminho sabe-se lá do quê. De todos talvez aquele que
tem a escrita mais rica em referências, densa até por vezes, e nele se
nota a erudição intelectual capaz de defender com argumentos de ferro e
até à morte os seus amores (tantos, Shyamalan é o nome
que agora me vem à cabeça) ou de atacar corajosamente as suas
desconfianças (lembro-me das séries de televisão, ou da falta de
pachorra para o teatro). A minha relação com o Luís mostra bem como a
crítica não é bem só sobre os filmes. E digo-vos isto porque eu sei que
por definição há muitas probabilidades de nos encontrarmos
frequentemente em espectros opostos (eu às vezes demasiado liberal, ele
às vezes demasiado conservador) e ainda assim ansiar pelo que o outro
pode ter a dizer, como é que vai defender a sua dama.
No espectro oposto ao rigor do Luís está o João. E não quero com isto
dizer que o João não é rigoroso, ele é-o, mas mais formal, do que
mentalmente. O João é o menos nerd dos quatro, sobretudo porque penso ser aquele que melhor tem noção da big picture.
Movendo-se muito frequentemente nas áreas da música (Fontória a semana
passada, alguém?) ou da literatura, a escrita do João procura preservar
uma coolness que seja um eficaz ponto de ligação entre quem escreve e o leitor. Neste sentido, o homem da big picture
(foi dele a ideia do site, como já devem ter adivinhado) tem um estilo
ameno onde frequentemente entramos sem dificuldade e que tem como dois
dos grandes trunfos o humor witty e a honestidade intelectual:
não viu, não sabe, não quer saber, escreve isso mesmo. Às vezes andamos
às turras por meninas bonitas (Adele) e amores e desamores (no cinema,
no cinema) mas partilhamos tantos outros filmes, piadas, copos. Não há
maneira de estar tenso com o João. Fico sempre com a sensação que pode
vir a eternidade quando leio ou estou com o João, e que tudo o que mais
chegar, lá estaremos nós para o resolver, discutir, caricaturar.
Finalmente, o Benjamin. O Ricardo é o mais novo dos quatro e quiçá o
mais talentoso. Não falta quem por aí lhe chame o novo João César.
Monteiro, não das Neves, apesar de ambos estarem ligados aos números. O
Ricardo tem o rigor e a paixão do Luís, a descontracção e a lucidez
social do João e mais. Há na escrita do Ricardo um verdadeiro talento
literário para o detalhe, às vezes o fulgurante detalhe visual
convertido em detalhe de escrita. E muitas vezes sai de jacto. Mas o que
surpreende mais nem é o olhar de crítico criador ou criador crítico, é a
limpidez de tudo isto. É o avanço velocíssimo do conhecimento do
cinema, a organização do tempo para mil e uma tarefas (tem mais textos
que quase todos nós juntos), a inesgotável capacidade de organização de
informação, a falta de stress ou dificuldade. O gozo genuíno de fazer
aquilo que se faz. E isso é do domínio da arte, transcende o trabalho.
Difícil apanhar o Ricardo triste. Ou então também acrescenta aos seus
talentos, o de actor. Carreira muito promissora é o que se avizinha para
o wonder kid que, com a mesma ligeireza, ora fala de lagostas ora encontra premissas geniais em filmes menos geniais. É tudo tão fácil para ti, não é Ricardo?
Entre nós temos esta piada privada que é sobre textos (dentro e fora do site) que apelam ao sentimento, ou em rigor, os textos-molha-cueca. Esta foi a minha tentativa de humeceder os vossos slips para lá das contingências dos 35 graus. Mas mais do que molhar o que quer que seja, fui genérico. Eu sei. Mas o propósito não era fazer uma exegese do trabalho
dos meus amigos, era elogiá-los. Era dar a ver que cada um é a peça inestimável deste meu puzzle pessoal de delicadas amizades que entram e saem do cinema, como memória e como quotidiano, todos os dias. Queria mostrar-lhes que os textos que escrevem já são adendas às suas palavras, gestos, atitudes. Que quase já me basta lê-los quando deles sinto a falta. Mas prefiro ter os textos e as pessoas e compor com eles a certeza (ou a ilusão) que formamos um frágil ecossistema cinéfilo onde nada seria o que é sem a presença, o olhar de cada um. De todos.
Finito. Agora rumarei à Grécia por uns dias e deixo-vos em paz. σας δούμε σύντομα.