segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
sábado, 14 de dezembro de 2019
quinta-feira, 24 de outubro de 2019
Mas temos boas estradas! E não tínhamos
Manoel de Oliveira: Diz o filósofo que levou milhões de anos para que o homem chegasse à inteligência e ao pensamento. E hoje, por exemplo, a arte moderna é o inverso, desfazer tudo quanto foi feito, toda a ordem, método e tudo a que se chegou. Enfim a uma possibilidade de ordem, de crítica, de consenso. Um desfazer constante de tudo. Vai tudo para trás, para a desordem. É a liberdade. A qual na verdade nunca existiu, excepto nos animais selvagens.
Agustina Bessa-Luís: Mas oh Manel, se vivéssemos noutra época, possivelmente criticávamos essa arte que agora está a valorizar. Seríamos críticos dessa época, como somos da nossa. A crítica existe sempre em relação à nossa própria intervenção no mundo.
Manoel de Oliveira: Concerteza que sim, mas as épocas distinguem-se. Há épocas que são de construção e de formação e outras de desconstrução e de deformação.
Agustina Bessa-Luís: Mas temos boas estradas! E não tínhamos. Não?
Manoel de Oliveira: Para que servem? Temos estradas, aviões, submarinos... Isso é horrível.
in "Conversazione a Porto" (2006) de Daniele Segre
domingo, 20 de outubro de 2019
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
Close up 2019
Já esta sexta-feira, juntamente com o grande João Monteiro do Motelx, apresento dois belos filmes no Close-Up Observatório de Cinema - Episódio 4.0. "Les Yeux Sans Visage" (1960) de Georges Franju, que é exibido às 21:30 no Pequeno Auditório e "Mandy" (2018) de Panos Cosmatos, que passará às 23:15 também no Pequeno Auditório da Casa das Artes de Famalicão. No dia seguinte à tarde, pelas 16:45, no espaço café-concerto, modero a mesa que co-organizei com o anfitrião Vitor Ribeiro, "A História do Espectador e da Cinefilia - dos Nickelodeons aos Torrents". A conversa conta com as ilustres presenças de Jose Marmeleira, Paulo Soares, Ricardo Vieira Lisboa e Tiago Baptista.
Estejam nas redondezas ou nas "longezas" apareçam
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
terça-feira, 24 de setembro de 2019
Parasitas de Joon-ho Bong
E se os pobres fossem os parasitas dos ricos? Este subtexto do novo filme de Joon-ho Bong terá o poder e o condão de afastar muito boa gente da sala de cinema, assim como de dinamitar o olhar sobre esta obra, em virtude de uma dada leitura política. Mas, ajunte-se, e se o coreano tivesse ido filmar os brinquedinhos, os recreios das mansões luxuosas e as paranóias das classes ricas do seu país e fosse ele mesmo o parasita? A térmita que tudo procura roer por dentro, com a enzima da comédia negra, da sátira social que explode em violência e compaixão. A coisa assim complica-se e ainda bem.
Ainda a premissa. Um casal e seus dois filhos vivem numa casa minúscula, com visão gradeada abaixo do nível da rua, de onde se podem ver os bêbados a mijar e em que é preciso subir à retrete para ter wifi. Fazem biscates, dobram caixas de pizza, os filhos não estudam e o desemprego é a condição. Do outro lado, a família duplo. A viver numa casa maravilhosa, a filha a necessitar de explicações, o menino irrequieto com problemas “artísticos”, e os pais cada um com seu babysitter: a empregada e o motorista. Sem revelar mais digo apenas que Bong filmará uma certa ideia de invasão do organismo, de luta pelo território, de esventramento de um elevador social parado que é preciso enxergar no seu poço e entranhas.
Os temas principais de Gisaengchung (Parasitas, 2019) não são novidade no cinema de Joon Ho Bong. Em 2006, com Gwoemul (The Host – A Criatura, 2006), já o realizador filmava, através de uma criatura nascida dos excessos da poluição e dos esgotos, uma ideia de contaminação e a relação parasita/hospedeiro. Uns anos depois, outro tema presente na Palma de Ouro de Cannes deste ano (a primeira de sempre para a Coreia), surgiria na sua obra: a alegoria para o confronto de classes sociais. Falo de Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013), uma distopia assente na ideia de divisão das classes de acordo com os diferentes compartimentos de uma locomotiva. Ora, o filme de 2019 é o sumo de laranja da ideia de parasitagem, com a polpa da manga da crítica social.
Mas vale a pena procurar ainda outro sabor a adicionar à já de si gostosa polpa manga-laranja. O ano passado, ainda em Cannes, um filme do compatriota Chang-dong Lee, Beoning (Em Chamas, 2018), vencedor do prémio Fripresci, filmava, a propósito da vida de um jovem novelista, as diversas entradas no apartamento modesto da sua amiga de infância e no apartamento luxuoso do amigo desta. Em 2016, Chan-wook Park, em Ah-ga-ssi (A Criada, 2016) filmava um plano de sedução e entrada na casa de uma viúva japonesa através de uma carteirista que veria tornar-se sua criada. E que dizer do “longínquo” ano de 2004, no qual Kim Ki-duk realizou Bin-jip (Ferro 3, 2004) acerca de um jovem “fantasma” que entrava nas casas de famílias desconhecidas, enquanto estas estavam ausentes e lhes pagava a estadia em limpezas ou concertos? Estes filmes coreanos da última década parecem ter em comum uma abordagem crítica das divisões sociais no país, através das casas e, em particular, da entrada “sorrateira” como forma de auscultação de uma possível, ainda que transiente, mobilidade social.
Nesse filme de Kim Ki-duk estava já contida esta ideia de presença espectral de uma dada classe sobre a outra. Coisa que Gisaengchung torna evidente. A dona da casa rica crê que tem um fantasma em sua casa e que isso lhe traz prosperidade. Assim como o seu filho que, não conseguindo distinguir visualmente a presença de um “parasita” em sua casa, sente a sua presença através de odor particular. Bong sugere, não sem problema, isso mesmo: que há um odor na pobreza que, mesmo quando tudo o resto é encenado ou cirurgicamente removido, se mantém inalterado. Aliás, não por acaso, numa das sequências, vemos uma enorme enxurrada que inunda de lama – de esterco, é isso mesmo que vem à mente – a casa da família pobre.
Em 1993, o filósofo Jacques Derrida escreveu um livro chamado Spectres de Marx que dava conta de uma certa presença, como retorno espectral, das teorias marxistas após a queda do muro de Berlim e o declínio do comunismo. Um contexto para atestar dessa espectralidade é dada por todo o pensamento neo-marxista do qual Antonio Gramsci, filósofo e membro fundador do Partido Comunista Italiano, foi um de vários exemplos. A razão porque o nomeamos é porque este defendia que a classe trabalhadora é dominada pela classe dirigente sem que aquela tenha noção desse controlo, desse domínio. Parte da violenta utopia de Gisaengchung inverte, ainda que transitoriamente, esta mesma premissa de Gramsci. Aqui é a elite toda poderosa que nunca se apercebe da presença espectral e domínio da classe desfavorecida.
O resultado, em qualquer dos casos, em Gramsci como em Bong, parece ser o mesmo. A queda da estrutura social, a guerra sangrenta ou a espera pelo melhor momento para a mudança. Entretanto, o coreano ensaiará um pós-prólogo economicista, mas… tudo não passará de um novo e rico (novo-rico) sonho.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
PROGRAMA
Colóquio O Ensaio Audiovisual na Era Digital: Investigação, Pedagogia e Artivismo
Dia: Quinta (dia 26 de Setembro)
Local: Sala/anfiteatro A209, Colégio Almada Negreiros, Campus de Campolide
Mesas:
Manhã
09h00. Apresentação
09h15 - 11h15. Mesa 1: Catarina Alves Costa, Carlos Ruiz e Rui Mourão. Moderadora: Madalena Miranda (IHC).
11h30 - 13h30. Mesa 2: Tiago Baptista, Susana de Sousa Dias e Ricardo Vieira Lisboa. Moderador: Bruno Marques (IHA).
Tarde
15h00 - 16h30. Debate, estilo mesa redonda — estados gerais — com Carlos Natálio, Patrícia Castello Branco, Daniel Ribas.
Moderadora: Érica Rodrigues (IHC).
Fim da tarde
17h00-18h00. «New Cinephiliac Activism! Or, Working in the Flow of the Audiovisual Essay» — Catherine Grant. Moderador: Luís Mendonça (ICNOVA).
domingo, 22 de setembro de 2019
Raccords do Algoritmo #17: Aquela quinta-feira e o cinema-sanatório
É fascinante que um filme tenha o poder de desabrochar o passado como se estivéssemos diante de um cristal, com mil reflexos, com um sem número de caminhos bifurcados. Como naquele célebre conto policial de 1941, de Jorge Luis Borges, intitulado precisamente, “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. A dada altura, o seu protagonista, Yu Tsun, agente do império alemão, em Inglaterra durante a 1ª Guerra Mundial, prestes a ser capturado pelo inimigo, irá desvendar o mistério do seu avô, Ts’ui Pen, que se havia retirado da vida política para escrever um romance e construir um labirinto. Borges escreve: “foi debaixo de árvores inglesas que meditei nesse labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma montanha, imaginei-o oculto por arrozais ou debaixo das águas, imaginei-o infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos em voltas, mas de rios e províncias e reinos… Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abrangesse o passado e o porvir e que implicasse de algum modo os astros.”
Um pouco antes do desfecho do conto, Tsun irá descobrir que, afinal, os dois projectos do avô eram um só e que o labirinto era o livro que escrevera. Também os filmes ajudam a percorrer esses circuitos infinitos, do passado e do porvir, contornando os obstáculos do sentido das coisas. Há pouco tempo tropecei, como se me achasse, num filme dito menor de Dino Risi. Uma comédia italiana em que um pai, doidivanas, playboy, tinha uma quinta-feira de Setembro para passar com o seu filho que vivia com a mãe na Suiça. Il giovedì (1964), assim se chama o filme, tem a mesma energia explosiva que já víamos em Il sorpasso (A Ultrapassagem, 1962), com o pai Dino, o actor Walter Chiari, aqui a ter fazer um papel parecido com o que Vittorio Gassman tinha no filme anterior, e no qual arrastava o jovem Jean-Louis Trintignant pelas ruas de Roma. O filme é um road movie em que Dino vai levar Roberto (ou melhor Robertino, o seu menino) através do seu mundo de mentiras e facilidades e a fazer tudo o que quer fazer: comer gelados, andar de carrossel, ir à praia, ao cinema, comprar brinquedos, ver a avó (viva o luxo!).
O problema é que, como se esperava, o menino tem tudo e o pai não tem nada. Não tem trabalho, não tem dinheiro, não tem carro, não tem passado- serve-se do argumento de The Great Escape (A Grande Evasão, 1963) para se fingir um herói de guerra. Aliás, no início, quando o pai vem buscar o filho, espera no hall do hotel que este desça de elevador: Robertino, rico, menino cheio de alergias e salamaleques, terá de descer literal e simbolicamente do elevador social para vir ter com o pai. São as mentiras fanfarronas deste que vão guiando este filme burlesco através de uma leitura política quer face a um homem-tipo que acredita no desenrasque, quer face aos espaços urbanos de uma Roma cheia de promessas de futuro e prosperidade, mais por cumprir do que reais.
Por esta altura já devem estar a pensar que o meu pai também é mestre das manhas e das artimanhas. Nem por isso. O filme de Risi desbloqueou antes no labirinto das minhas memórias de infância e adolescência os muitos passeios de carro que fazíamos. Eu e o meu pai, mas toda a família, muitas vezes. Visitas pelo campo, piqueniques, idas a casa dos avós. Lembro-me dessa sensação de estar no carro, muitas vezes embalado pelo calor e pelo torpor das curvas. Lembro-me de ter sono, de ter sede, de estar impaciente por chegar ou por não chegar. Lembro-me de ter medo de passar ao lado dos penhascos, de dizer em voz invisível, “não vamos cair, não vamos cair”. Recordo também as conversas, as discussões, a música pimba e de ver nos olhos de Walter Chiari, como nos do meu pai, uma expectativa. Uma vontade de agradar, para que pudéssemos sentir a alegria que ele tinha, de ter um dia inteiro para desfrutar, para fazer coisas épicas e absurdas. Podia ser incitar-me a colher figos alheios ou, quando um dia, em criança, tendo eu merda até às costas, ma limpou num ribeiro, coitado.
Il giovedì é um filme bonito pois ele é uma ilha de amor honesto – o de um pai em relação a um filho – rodeado de mentiras por todo o lado. Só esse amor permanece como verdadeiro depois de caídas todas as ilusões e pretensões de um futuro mítico. Il giovedì é um filme bonito também porque ele não conta apenas a aproximação de Dino a Robertino. O filho vai dar-lhe um abraço carinhoso no fim, antes de ser levado novamente para o lado de lá: há uma cortina que se fecha, quando o menino vai jantar com a mãe e a sua fräulein suíça. Mas Risi filma simultaneamente a viagem do pai. É um filme reconciliação de um quarentão que começa a aprender os prazeres do iogurte e do compromisso com a sua companheira. No último plano do filme, vemos Chiari a subir umas enormes escadas, a caminho de casa, feliz, com o leite e o iogurte para o pequeno almoço do dia seguinte na mão. Sobe as escadas aos solavancos, como um homem-cavalo, de difícil freio, rebentando os estalinhos do miúdo. Um casal afasta-se pois é um homem/criança estranho e a câmara sobe ligeiramente para o ver subir. Ela, a câmara, sabe que tudo o que se seguirá será íngreme mas ele, Dino, subirá sempre rápido, alegre, sem pensar muito.
Esse plano em concreto liga-se bem, como espelho invertido, como oposto, ao plano final de outro filme que é também sobre viagens entre pais e filhos, desta feita de labirintos e memórias literalmente feito. O filme é Sanatorium pod Klepsydra (Sanatório de Vidro, 1973) do polaco Wojciech Has e, nesse plano final, a câmara em vez de subir, desce à terra. Fim do trajecto para um pai que entretanto morrera e de um filho que se terá tornado num revisor cego de um comboio de memórias no qual havia entrado no início. Como acontecia no conto de Borges em que se dizia que um livro-labirinto era um livro infinito, circular, em que a última página fosse idêntica à primeira. E, como em Sanatorium, um ser que vai da terra à terra, uma viagem que não termina, que se renova e bifurca em suas inúmeras possibilidades.
E, a dada altura, comecei eu a imaginar que o herói do filme de Wojciech Has era afinal Robertino, do filme de Risi – labirinto cinéfilo da memória e da imaginação – que, anos passados, vinha saber do pai, lá no cimo daquelas escadas, lá depois de ter adquirido maturidade, sabe-se lá Deus adonde. No cimo das escadas encontra-se o baixo da terra, uma circularidade em que filhos se vertem pais e assim por diante. Esta é claramente uma alucinação da cinefilia. Mas se há um sítio onde ela poderia ter lugar é a propósito deste filme-baile-sonho, coisa hipnótica, excêntrica e surreal que começa num comboio com figuras tombadas, cheias de pó, e um revisor Tiresias dizendo a Józef, o herói, que ele próprio encontrará o caminho. Caminho que começa num sanatório gótico, labiríntico, onde o tempo surge retardado e o pai ainda não morreu. Pesadelo lynchiano, séries fractais de tempos que se consomem, como em Resnais, onirismos de Fellini e aquele célebre e isolado hotel kubrikiano que, muito provavelmente, daqui sairá.
Em formato panorâmico, com planos-sequência omnipresentes, Józef irá saber do pai num sonho/pesadelo que falará de erotismo, de uma Polónia do pós-guerra ainda com forte passado anti-semita, com históricas figuras de cera sangrando e pessoas com cabeça de pássaro gigante. Has adapta aqui vários contos do escritor polaco Bruno Schulz que, ao estilo de Kafka ou Borges, parece interessado na figura do viajante solitário, vendo o mundo através de uma espiral abstracta do absurdo e do tempo multiplicando-se defronte da cronologia e linearidade.
Num brilhante ensaio de 2015, intitulado “Entranced”, o escritor Adrian Martin, analisa os últimos filmes de Alejandro Jodorowsky – La danza de la realidad (2013) e Poesía Sin Fin (Poesia Sem Fim, 2016), com os quais este Sanatório de Vidro dialoga bastante bem – à luz da ideia de transe e de psicomagia. Martin, que mantém ele próprio um diário dos seus sonhos e que sugere a cinefilia como uma espécie de transe pela qual se acede a um outro mundo e às camadas imaginativas da realidade, torna claro, com a ajuda do trabalho seminal de Lyotard dos anos 70, a relação próxima entre as operações do inconsciente e as operações cinemáticas. Um filme como o de Has não procura, como é a intenção de Jodorowsky, aproveitar essa relação para enviar, através de imagens e sons, mensagens ao inconsciente. Contudo, ele é um sonho em que o protagonista, e a câmara com ele (nós), vamos adentrando essas camadas de onirismo. Não para as interpretar, mas percebendo a mise-en-scène como operador para o “trabalho do sonho”, desenvolvido por Freud. Por outras palavras, o inconsciente não procura verbalizar, nem interpretar, procura sim as cores, as imagens, os gestos, a fantasia, os afectos.
Talvez por isso seja tentador qualificar Sanatorium pod Klepsydra como um filme difícil, um filme em que tudo passa, onde as paragens são provisórias e sem sedimento. O filho ficou a saber que o pai partia durante longas temporadas, mas o que fazia nessas ausências? Quanto tempo e quantos países e aventuras cabem numa elipse? Era um homem debochado, um comerciante ganancioso, um viajante por territórios exóticos, um apaixonado por pássaros? Talvez sim, a tudo. Talvez não, a tudo. Espreita-se por janelas, por portais, por portas muradas. Sobem-se escadas do pecado, debaixo da mesa há uma passagem secreta para a rua.
Todo o bom cinema é um sanatório. Nele viaja-se como num labirinto circular, retraçando imagens, lembranças, afectos, tesões. Pondo hipóteses: como a minha que envolvia uma escada subida por um personagem italiano nos anos 60 e que dava para uma tumba na Polónia, quase uma década depois. Agora que penso nisso, talvez fosse possível montar as imagens mentais de todos os passeios de carro que dei, até hoje, com o meu pai. Fomos a tantos lugares e sempre no mesmo sítio. É o cinema o que hoje me ajuda a pôr em movimento essa maquinaria da memória, essa montagem de viagens paternais, em que Kuleshov me surge, como anjo redentor que sempre virá em meu auxílio, ligando o amor ao passado e a alegria ao presente.
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
sábado, 14 de setembro de 2019
The Third Man
Os dedos de Carol Reed que deviam ser os dedos de Orson Welles. Ou melhor, da sua personagem Harry Lime, em The Third Man. Um filme que se diz ter um dedinho (ou mais do quem um) de Welles na realização de Reed. Quem foi afinal o first man ou talvez o second man, depois do first man, o escritor e argumentista Graham Greene? Quem produziu com "mais força": Korda ou Selznick? Névoa mitológica que paira sobre esta Viena dividida do pós-guerra. Tudo aqui nos surge invertido, ou inclinado, como em muitos planos de Robert Krasker. Ou ainda mais precisamente: desnorteado. Não há valsas mas cítaras. O porteiro diz que Harry foi para o céu e aponta para baixo. Ou que terá ido para o inferno e aponta para cima. Há indigestões nas alturas, no inferno da roda gigante, há sombras libertadoras nos céus fétidos e labirínticos, os esgotos da cidade. Do oeste vem o falido escritor de westerns, do leste a ameaça da deportação soviética para Anna. E ainda os britânicos, os franceses, o peso alemão com sua expressão - a língua - e o seu expressionismo (tanta coisa de M, tanto ou mais quanto os Langs da guerra). E os relógios e a aborrecida paz Suiça, e as ferocidades renascentistas... Desnorte como palavra para a rearrumação. Como dizia o Bénard, The Third Man é um primeiro filme sobre a guerra fria, mas também uma passagem dos filmes em grande, dos anos 40, "à Selznick", aos filmes de desespero e amargura dos anos 50. Holly Martins (Cotten) é um herói que chega tarde demais (10 minutos) e passa todo o seu tempo a tentar recuperar esse tempo perdido. Recuperar a verdade do que se passou. Com o seu amigo, mas sobretudo com o seu próprio estatuto de herói, a sua holiness. Mas num espaço estraçalhado e em mudança, como é o do filme de Reed, ser "santo" já não ajuda, não é adequado. The Third Man é um filme sobre um herói que perde o pé, que terá de descer aos lugares devassados pela guerra e pelos interesses das pessoas. E aí, recuperar uma outra forma de viver, não tão certo da oposição valorativa implacável entre o alto e o baixo, o certo e o errado. Do esgoto pode ver-se o céu e do cimo de um parque de diversões, o abismo.
segunda-feira, 9 de setembro de 2019
quarta-feira, 4 de setembro de 2019
O segredo
Por vezes ainda com a luz de ouro a resvalar nas folhas, outras já com a noite de grafite a entrar nas narinas do tempo, vou até à cozinha. Agradecido ou desistente, o passo lesto é o mesmo. Concebo apressadamente, coçando a cabeça, uma fórmula mágica. Ela será o jantar. Distraído com Bach ou com os Dama, descasco uma curgete, parto uma cenoura, lavo uma caneca escura do café da tarde. Quando me esqueço de estar esquecido, olho para o lado e invariavelmente ele lá está. Corpo estendido se faz calor, recolhido se faz frio. Dormita uns segundos, depois abre os olhos. Daí a uns minutos outra vez o ciclo: sono pachorrento e vigília. O jantar vem chegando. Certos dias há um aroma que se desprende da bricolage de panelas que o torna inquieto e sorridente. Mas, na maioria das vezes, é estátua. Patas metidas debaixo do queixo, os olhos, como periscópios, a sondar tudo: estados de espírito, migalhas, um avião mais barulhento. Corpo imóvel e olhos velozes. Ele olha-me sempre - os mais dramáticos e azeiteiros usariam o verbo velar para esta frase. Volta e meia, distraio-me das águas e dos lumes e, quando viro a cabeça, lá está ele. Invariavelmente. Como um relógio com pelo. Ou uma rocha feita de esplendor. Em certas ocasiões apetece-me perturbar a sua imobilidade, os seus olhos farol. Baixo o lume, baixo o corpo carcacento e ponho-me a seu lado, de gatas, cu para o ar. Aproximo o rosto e ele levanta-se imediatamente, como dizendo: "bem-vindo, às minhas alturas". E, em pensando isto no seu pensamento canino, lambe-me as orelhas. Primeiro uma, depois a outra. Lentamente, como se beijasse. Minuciosamente, como se laborasse. Lambida atrás de lambida. Muitas vezes fico só assim, estátua de sal, inerte, de cu para o ar. Só assim, a ser lambido. Ele lambe-me e, invariavelmente, penso que quando se aproxima do meu ouvido me conta um segredo. Um segredo longínquo, que vem lá do fundo dos existires. Todos os dias mo conta, língua pronta, todos os dias mo recorda. Um sussurro ao ouvido da luta, um toque de rei contra o timbre da inveja. Saliva confidente, sorve-me a cera e a pressa e as sombras. Num ápice é tempo de pôr a mesa e cortar rente o final do dia. O que diz o segredo? Pouco importa. Até porque, infortunadamente, não vos poderia contar. Senão deixaria de ser o que é: um segredo.
domingo, 1 de setembro de 2019
Dolor y gloria de Pedro Almodóvar
A cerca de meia hora de Dolor y Gloria (Dor e Gloria, 2019), Salvador, realizador envelhecido, cheio de dores e maleitas, jaz grogue no seu elegante sofá encarnado. Está drogado. Acabou de fumar uma chinesa com Alberto, actor que protagonizou o filme que lhe deu a fama – Sabor – e de quem não sabia há muitos anos. Agora reencontrados, o primeiro desfruta de uma intermitência da dor proporcionada pelo cavalo e o segundo, desesperado por trabalho, lê um texto no computador do cineasta – A adição. Este é um texto que fala das memórias do cinema ao ar livre, ligadas às brisas das noites de Verão e à vontade que dava de fazer xixi, quando os meninos viam, no ecrã enorme, cenas com águas e cataratas como a Marilyn Monroe em Niagara (1953) ou o Warren Beatty e a Natalie Wood em Splendor in The Grass (Esplendor na Relva, 1961). Mais tarde, saberemos que a adição não é (apenas) a do cinema, mas a tóxica: a de um amante do passado que Salvador não conseguira resgatar da heroína.
No centro da dor e da glória do mais recente filme de Almodóvar, de natureza autobiográfica – diz-se o seu 8½ (Fellini 8½, 1963) – está este, tantas vezes explorado, par: cinema e droga. António Banderas, actor que esteve no centro do “sabor inicial” do cinema do realizador espanhol é aqui chamado para fazer de alter ego deste. A Salvador começam-lhe a faltar as forças para filmar e, sem cinema, corpo e mente começam a dar de si. Terá que encontrar uma droga de substituição, droga essa que uma carreira plena de filmes conseguiu manter à margem. Trajecto inverso o de Alberto (Asier Etxeandia) que precisa voltar a representar para manter a sua adição controlada. Este vai-e-vem entre a toxidade real e a cinéfila em Dolor y Gloria, mais do que ser tomada na sua literalidade, pode ser vista como a explicitação de um método.
O método é tudo, ele faz o homem. E a razão deste ser um filme vulnerável, em que Almodóvar se apresenta, não é tanto por via directa. A de um homem com seus traumas com ex-amantes, a descoberta do desejo em criança, uma mãe pouco receptiva ao seu trabalho, etc. O que Almodóvar mostra – quiçá pela primeira vez de forma tão directa – é o seu método de trabalho. Um filme metodológico mais do que melodramático, portanto. Um meta-melodrama que vai avançando nesse doce e amargo vai-e-vem, entre o passado e o presente, como um homem em declínio que recorda, como comédia ou como drama, o que viveu. No final das contas, nunca se sabe bem qual dos dois, se a comédia ou se o drama, prevalece. Isso é o que dá a intender Salvador quase no fim, mas o espectador dos filmes do espanhol sabe bem que não é bem assim. Não é tanto uma questão de escolha, mas de cúmulo: quem assiste à vida fílmica de Almodóvar chora e ri, às vezes na mesma cena.
Quando, nos diversos flashbacks de Dolor y Gloria, Alberto recorda o seu passado, como quando na infância foi viver com os pais numa cova em Paterna, Valência, ou quando, mais tarde, cuidou da mãe antes dela morrer, surgem na mente do espectador evocações de memorabilia sentimental almodovariana, pedaços de filmes como La mala educación (Má Educação, 2004) ou Todo sobre mi madre (Tudo Sobre a Minha Mãe, 1999). Por outras palavras, praticamente toda a segunda metade da sua carreira foi feita neste registo de auto-ficção (termo que a dada altura surge, comicamente, na boca da mãe de Salvador), no qual a prescrição para a vida era encontrada na sublimação do cinema. Uma obra como um rosário feito de episódios de amor e glória, um colar de flash-memories. Especular não leva a muito, mas talvez possamos pensar no envelhecimento do realizador como o estreitamento desse longo caminho de tecelegem da vida no cinema e do cinema na vida. Por isso, Dolor y Gloria possui esse lado nu e meta-melodramático: em que cada memória é, literalmente, uma cena de filme.
Talvez seja assim escasso procurar valorizar esta sua última obra – um filme que encantou a crítica e que era um dos favoritos a vencer a Palma de Ouro em Cannes este ano – como um mero regresso de Almodóvar à sua casa, a do melodrama, depois de nos últimos anos ter-se dedicado a experimentar o thriller, ou a reabitar a comédia e o drama “sério”. Dolor y Gloria é antes um filme sobre o cinema como instrumento terapêutico da memória, um entre covas – a do passado e a do presente, num momento à Brisseau em que vemos o apartamento do próprio Almodóvar, em Madrid, como a casa-museu (mausoléu) do realizador Salvador. Um filme-súmula de quase todos os filmes de Almodóvar. Filmes que davam vidas, formado que foi o cineasta nas histórias das mães e das vizinhas.
A certa altura Salvador diz-nos: “a minha vida sem filmar não faz sentido”. O mesmo podemos dizer dos seus filmes: os seus filmes sem a vida não fazem sentido. Que siga o vai-e-vem, a movida ardente e dolorosa, é o que eu desejo.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
"Once Upon a Time … in Hollywood" de Quentin Tarantino
Um dos dilemas mais interessantes levantados por este novo filme de Tarantino talvez seja ilustrado pela ideia de sombra, mais até do que a tão propalada noção de duplo. É verdade que filmes como Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009) e Django Unchained (Django Libertado, 2012), pelo menos esses, já tinham apelado para a capacidade do cinema ser essa máquina redentora da história. De certa forma, o passeio pela L.A. de 69 e o episódio do assassinato de Sharon Tate de Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019) apelam para essa ideia, mas de uma forma algo diversa. Não é tanto, ou apenas, redenção do que ficou na grande narrativa histórica, mas a atenção às tangentes sombrias, paralelas que sempre acompanham os manuais de história, as lendas imprimidas, a história sem o contrapelo assinalado por Benjamin. Tal não seria um problema em si, esse "elogio da sombra", se ele não viesse acompanhado de um gesto contraditório que o próprio filme encerra: para filmar a sombra, e nela retraçar a ideia de duplificação, de lado B, Tarantino puxa o seu próprio estilo, a sua mise-en-scène, plena de referências e glamour cinéfilo, para a spotlight. Como uma anedota que se conta de forma interminável até que deixemos de acreditar na sua leveza e nos sobre apenas o peso. Temos portanto Tarantino em versão evangelizadora, vertida em método próprio, destacável de personagens. O mundo according with Q.T. aplicável a uma Hollywood em queda lenta mas, sem escândalo, o veríamos transferido a qualquer outro período histórico.
E é essa a questão. Se é verdade que nem todos os filmes de Tarantino são reconstituições históricas, todos eles possuíram sempre uma dada relação com a história... do cinema. Relação essa que surgia em filigrana e que aqui nos é dada em bloco e parece devorar tudo o resto. O que são boas notícias para gáudio do cinéfilo nostálgico que se regozija com uma boa máquina do tempo e que percebe como Tarantino está em Hollywood em 2019, a dizer "era uma vez" uma fábrica de sonhos (alguns, quase todos, entretanto, destruídos). Ainda sobre a noção de duplo pergunto-me: qual o duplo de uma boa ideia, uma má? Once Upon a Time é, a espaços, uma cansativa máquina de duplicar. Máquina essa que está na essência do cinema de Tarantino, mas aqui parece descontrolada. Booth é duplo de Dalton, mas também... o rancho que visita o segundo é duplo do cenário do western televisivo que o primeiro está a filmar; a casa ao lado é dupla da casa ao lado; o papel da televisão é (cada vez mais) duplo do papel do cinema; assim como os westerns do esparguete são o duplo do western americano; Once Upon a Time duplica a redenção de Inglorious; o cinema italiano duplo do brilho americano; as cenas filmadas por Dalton tem um duplo lá fora, na "vida"; Tate vê-se duplicada no ecrã... Em resumo, a máquina rola, mas com pouco com que rolar. O espectador fica entretido a juntar os pontinhos para descobrir todas as duplicações, ou embevecido com as referências que se prolongam ad nauseum. Fica-se, pela primeira vez, com Tarantino "preso" nesta espécie de gimmick que cansa bastante, como uma piada proferida à exaustão, um zeitgeist que deve ser procurado em cada esquina e que a cena final (assim como uma ou duas outras pontuais a meio do filme) procura disfarçar.
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
A Terra do Silêncio e da Escuridão
Quando penso em mãos no cinema vêm-me à memória logo as de Farley Granger, enluvadas, estrangulando a sua vítima no início de "Rope", o love e hate das mãos de Mitchum no "The Night of the Hunter" e ainda a delicadeza e meticulosidade dos dedos finos e compridos de Martin LaSalle em "Pickpocket". Bresson aliás que é tido, entre cinéfilos, como o cineasta "oficial" das mãos. Mas talvez seja necessário acrescentar ainda esta obra prima da tactilidade que é "A Terra do Silêncio e da Escuridão" de Herzog. Não deixa de ser assustador e maravilhoso que um homem que tinha um ano antes filmado a grande dimensão do caos e da crueldade a partir da pequena dimensão dos seus protagonistas anões, tivesse agora embarcado nesta viagem de doçura.
Não motivada por uma homenagem aos cegos surdos que vemos no filme, mas a este desafio intelectual de trazer para a imagem e o som do cinema aqueles que a essas imagens e esses sons não conseguem recorrer para viver no mundo. Restam as mãos para tocá-lo. Os lábios dos outros, os espinhos dos cactos, o pelo dos animais, as vibrações de um rádio a pilhas, a rugosidade dos troncos das árvores. As mãos com olhos e ouvidos em cada poro, superfície hiper codificada em que cada superfície pode ser uma letra, a começar nas vogais na ponta dos dedos. "A Terra do Silêncio e da Escuridão" tem este poder que só as contradições abarcam. Por um lado, Herzog e o seu cinema são fascinados pela capacidade de fazer com que os mundos diferentes, incompreensíveis, isolados, marginais, estigmatizados venham para a luz. Por outro lado, há uma barreira intransponível, uma bolha, que aqui apenas se deixa tocar nos seus contornos. Entre o poço e a imaginação, entre a prisão e o sonho, experimenta-se a amizade, o diálogo, a visita ao zoo, o primeiro voo, ou a poesia.
sexta-feira, 16 de agosto de 2019
A teia
Nos últimos tempos, em cada manhã, chego ao meu carro, empoeirado, triste de ter passado a noite invariavelmente ao relento e descubro uma teia de aranha, construída no espelho, do lado do condutor. A primeira vez que a vi, limpei-a, distraidamente, enquanto me ajeitava no banco para a curta viagem do dia. Na segunda vez, parei por uns instantes, curioso, achei graça ter outra teia no mesmo sítio. Destruía-a de um gesto seco e arranquei. Terceiro dia: irritei-me. Raio da aranha, onde é que ela pensa que está. A sério, onde é que ela estaria? Dei cabo da teia e espreitei dentro da borracha junto ao espelho. Nada. Nem sinal. Mas afinal... Seriam várias aranhas ou a mesma aranha? Uma construção sempre renovada ou diferentes teias? Uma miragem, um sonho, uma mania? O tempo tem destas coisas, a noite faz milagres, a solidão tem letras ternas. Com o passar dos dias fui-me habituando a remover a teia do espelho antes de entrar no carro. Todos os dias, das cinzas renascida, ela lá estava, viva, em milhares de veios, silenciosa e imponente. Como uma escultura de cristal trazida pela noite. Dia sim, dia não, voltava a procurar a sacana da arquitecta, sempre sem sucesso. Brinquei com a coisa, pensei em cobrar renda, mas não tinha como acertar o valor ante o misterioso e humilde inquilino. Hoje acordei, andei uns quantos passos ensonado, meio trôpego, até ao carro, sentei-me e arranquei. Olhei pela janela. A teia do lado de fora brilhava no orvalho da manhã. A resiliência é um valor que podemos aprender de qualquer das existências. Por mais pequenas, misteriosas que sejam. A partir de hoje será a nossa teia.
Robert Paul. Eis um filme de 1903 cheio de camadas e géneros. Início idílico e calmo, o mundo vai bem, uma rua onde passam pessoas, um casal flirta, uma senhora passa apressada. Subitamente, o perigo aproxima-se. Uma carruagem surge com alguma velocidade ao virar da esquina e o senhor ainda despedindo-se, embevecido com a senhora. Suspense. Há o momento do atropelamento com a trucagem mas mantendo uma certa agressividade. O mudo ainda não sabia virar a cara e por isso vemos mesmo o cavalo passar por cima do senhor/boneco. E lá atrás, a magia: surgem os voyeurs do cinema que sempre param tudo por um bom acidente. Segue-se o importante momento da morte, o drama. Mas também a punição do responsável pois este é logo perseguido por um polícia que sai de campo e volta a entrar com o mau da fita. A questão moral e da redenção. Finalmente a farsa. Tudo não passara de uma blague e a vítima ressuscita e foge com a sua amada. Final mais do que feliz. E tudo isto não chega a um minuto.
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Também os Anões Começaram por Baixo
É difícil sair ileso de "Auch Zwerge haben klein angefangen" do Herzog. Em português, "Também os Anões Começaram por Baixo". Os risos intermináveis do bando de anões, inquietos e sádicos, toda aquela demonstração dionisíaca com a crucificação do macaco, o lançamento das galinhas, as flores a arder, ainda a imagem símbolo do carro a andar em círculos. Herzog queria filmar uma ideia - normalmente é meio caminho para a desgraça - do desajustamento do mundo em relação ao humano (somos todos anões, à nossa maneira, dizia). O mundo sempre é gigante, nos supera e trai e, por isso, reagimos de forma desorientada, impotente, cruel. E o mesmo com a natureza e o mundo animal. Assim seja. Por esta altura já Herzog havia sido mordido por ratazanas na cara e sabia do assunto.
O filme foi sobretudo atacado por ser apolítico, Maio de 68, Baader-Meinhof, a comunidade do cinema exigia-lhe uma posição firme. Mas é interessante ver como olhar hoje para este filme de Herzog mostra bem a inversão de todas as intenções. Tudo saiu furado. É verdade que o alemão queria fugir dos activismos, mas todo o "plot", mínimo, é precisamente o de um bando que procura a invasão de uma casa e a sua própria evasão. Os planos prolongam-se sobretudo nos momentos de insurreição e de libertação de uma energia de revolução. Já, pelo contrário, o que estava certo, esse manual de proporções com o mundo, essa lição de crueldade, é hoje, passados 50 anos, na sua ideia de mise-en-scène, ofuscada por uma atmosfera de pura provocação. Um levar aos limites do mal-estar, um subtil fascínio pelo mal, uma vontade de filmar o horror, seja na galinha que carrega o rato morto no bico, ou os planos obsessivos da galinha manca. Feitas as contas a "perífrase" de "Também os Anões Começaram por Baixo" podia bem ser: "Freaks" + "Torre Bela". Mas não é completa. "Funny Games" seria, por exemplo, uma forma de demonstrar o Haneke que há no jovem Herzog, nomeadamente no seu comprazimento em mostrar aquilo que nos faz querer desviar o olhar..
sábado, 10 de agosto de 2019
"Bob & Carol & Ted & Alice" de Paul Mazursky
A primeira longa de Paul Mazursky, Bob & Carol & Ted & Alice, de 69, é um filme que procurava abordar a questão do sexo de forma adulta e frontal. Como se dizia no workshop, que as personagens de Natalie Wood e Robert Culp frequentam no início do filme, era preciso olhar as pessoas mesmo na cara, não desviar o rosto. A mesma coisa com os affaires da carne, os apetites. Basta pensar no rosto impassível do psiquiatra perante o discurso cheio de vergonhas e evasivas de Alice (Dyan Cannon), ou a forma como o filme termina, daquela forma meio surreal, à saída de um casino - orgia meio conseguida ou meio tentada - com os dois casais olhando-se e olhando desconhecidos olhos nos olhos, enquanto ouvimos Jackie DeShannon cantar, do clássico de Burt Bacharach/ Hal David: "What the world needs now is love, sweet love / It's the only thing that there's just too little of".
Neste belo texto do Francisco, sobre um filme posterior de Mazursky, Blume in Love, ele faz uma distinção importante entre ligeireza e leveza. Mazurky consegue ser leve, sem ser ligeiro. Aliás, talvez também esteja numa distinção deste tipo a possibilidade de compreender a posição do realizador entre a seriedade e o peso de Bergman (Cenas de Uma Vida Conjugal só surgiria em 73, mas não há como não pensar na ligação/contraste entre a fisicalidade leve de Elliott Gould (o Ted) e a presença solene de um actor como Erland Josephson, nas "cenas de cama") e a ligeireza, pelo menos em termos de uma maior exposição do seu humor, em algumas das comédias sexuais de Woody Allen. Bob & Carol & Ted & Alice é a manifestação desta leveza, em que dois casais descobrem a possibilidade de uma abordagem mais franca da sexualidade, sem que isso tenha um peso trágico necessário ou que o riso contorne as questões. Aliás, sendo um filme de chambre, as suas cenas no exterior, algo bizarras, fazem essa transição, nada ligeira, entre o início e o fim do filme: que é como poderia dizer entre o início dos anos 60, com suas ideias new age, muitas vezes rotuladas de excêntricas ou "de época" (a cena do workshop) e o final dos anos 60, trazendo essa franqueza para aos quartos dos norte-americanos e as ruas citadinas (a já referida cena de fim). Coming of age de uma new age, de certa forma.
E, além disso, há outro pormenor importante. Não sabemos nunca se os casais trocam de facto, se a orgia entre os amigos de longa data acontece. Mazursky prefere antes a potencialidade de uma outra lógica relacional, sem que queira impor uma moral, aberta ou fechada, às suas personagens. Não é por acaso que, como também se refere no texto do Francisco, este seja um cineasta tão permeável ao cinema europeu que se fazia. Há Fellini, há Bergman, há o ennui burguês de Antonioni, mas também há Rohmer . Ma nuit chez Maud é do mesmo ano de Bob & Carol & Ted & Alice. E ambos são filmes-conversa, filmes interiores, que cruzam o sexo entre as personagens. Ou melhor a possibilidade do sexo. O que significa que Mazursky e a sua leveza não têm bem definido um destinatário, nem um dono, e talvez por isso ainda hoje se mantenha aqui connosco, em potência de amor, em potência de foda.
terça-feira, 6 de agosto de 2019
sábado, 3 de agosto de 2019
Tudo aquilo que me ensinou é merda
Sim, sim. Ainda tenho ótimos alunos, um pouco por todo o mundo, com quem mantenho contacto. E há cinco ou seis deles que são muito mais capazes e talentosos do que eu. Esta é a maior recompensa que um professor pode ter: saber que um aluno é mais capaz do que ele próprio. Houve também algumas surpresas. Tive uma aluna tão tímida que nem sequer tirava o casaco quando vinha reunir-se comigo. Mas conseguiu a melhor nota do seu ano, summa cum laude, e depois disse-me: “Venho despedir-me e dizer-lhe que tudo aquilo que me ensinou é merda.”
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
Se eu tivesse o engenho de Cervantes
"Se eu tivesse o engenho
de Cervantes, faria um livro para purgar a Itália, ou antes, todo o mundo
civilizado – como ele purgou a Espanha da imitação dos cavaleiros errantes – de
um vício que, tendo em conta a mansidão dos costumes actuais, ou talvez até em
todos os outros casos, não é menos cruel nem menos bárbaro do que qualquer
outro vestígio da ferocidade dos tempos medievais punido por Cervantes.
Refiro-me ao vício de ler ou declamar aos outros as próprias composições: vício
que, sendo antiquíssimo, nos séculos passados foi uma desgraça ainda tolerável,
porque rara: mas hoje, que todos escrevem, e não há nada mais difícil do que
encontrar quem não seja autor, tornou-se um flagelo, uma calamidade pública,
uma nova tribulação da vida humana. E não é gracejo, mas a verdade, dizer que
para este os conhecidos são suspeitos e as amizades perigosas, e que não há
hora nem lugar onde qualquer inocente não deva temer ser apanhado e submetido
aí mesmo, ou arrastado para outro sítio, ao suplício de ouvir prosas sem fim ou
versos aos milhares (…)”
Giacomo Leopardi
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
Pin-up exemplar
“A pin-up exemplar, imagem da mulher jovem ideal, renova a fotografia cuidadosamente retocada, enviada pela “madrinha de guerra”, essa noiva de morte, distante, intocável e na maioria das vezes desconhecida, já que só se manifesta ao soldado em cartas e encomendas que continham, além de outras “doçuras”, algumas relíquias da própria mulher, como madeixas de cabelo, perfume, luvas ou flores secas. Esta situação é ilustrativa da reflexão de Rudolph Arnheim sobre um cinema em que, depois de 1914, o actor se torna acessório e o acessório torna-se protagonista: de facto, numa guerra da qual ainda está excluída, a mulher tornou-se uma tragédia objectiva. O olhar obsceno lançado pelo conquistador militar sobre o corpo tornado distante da mulher é o mesmo que lança sobre o corpo territorial desertificado pela guerra, e procede assim directamente o voyeurismo do “realizador” quando filma o rosto da estrela como quem filma uma paisagem com o seu relevo, os seus lagos e vales que ele só tem de iluminar com uma câmara que, segundo Josef von Sternberg, inventor de Marlene Dietrich, atingia à queima-roupa… (…) Durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a generalização do striptease (trocadilho com fitas de cinema e excitação sexual) indica as dimensões tomadas por esta transferência tecnófila numa sociedade que se militariza. Antes censurado, o striptease será imposto pelo exército em Inglaterra, nomeadamente com a célebre Phyllis Dixey. A dançarina que se despe em cena torna-se (tal como o soldado) um filme para os que a observam, soltando lentamente as peças de roupa como se fossem sequências, como os movimentos lascivos a fazer as vezes de imagens em fade out e a música de fundo como banda sonora.”
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