quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O segredo


Por vezes ainda com a luz de ouro a resvalar nas folhas, outras já com a noite de grafite a entrar nas narinas do tempo, vou até à cozinha. Agradecido ou desistente, o passo lesto é o mesmo. Concebo apressadamente, coçando a cabeça, uma fórmula mágica. Ela será o jantar. Distraído com Bach ou com os Dama, descasco uma curgete, parto uma cenoura, lavo uma caneca escura do café da tarde. Quando me esqueço de estar esquecido, olho para o lado e invariavelmente ele lá está. Corpo estendido se faz calor, recolhido se faz frio. Dormita uns segundos, depois abre os olhos. Daí a uns minutos outra vez o ciclo: sono pachorrento e vigília. O jantar vem chegando. Certos dias há um aroma que se desprende da bricolage de panelas que o torna inquieto e sorridente. Mas, na maioria das vezes, é estátua. Patas metidas debaixo do queixo, os olhos, como periscópios, a sondar tudo: estados de espírito, migalhas, um avião mais barulhento. Corpo imóvel e olhos velozes. Ele olha-me sempre - os mais dramáticos e azeiteiros usariam o verbo velar para esta frase. Volta e meia, distraio-me das águas e dos lumes e, quando viro a cabeça, lá está ele. Invariavelmente. Como um relógio com pelo. Ou uma rocha feita de esplendor. Em certas ocasiões apetece-me perturbar a sua imobilidade, os seus olhos farol. Baixo o lume, baixo o corpo carcacento e ponho-me a seu lado, de gatas, cu para o ar. Aproximo o rosto e ele levanta-se imediatamente, como dizendo: "bem-vindo, às minhas alturas". E, em pensando isto no seu pensamento canino, lambe-me as orelhas. Primeiro uma, depois a outra. Lentamente, como se beijasse. Minuciosamente, como se laborasse. Lambida atrás de lambida. Muitas vezes fico só assim, estátua de sal, inerte, de cu para o ar. Só assim, a ser lambido. Ele lambe-me e, invariavelmente, penso que quando se aproxima do meu ouvido me conta um segredo. Um segredo longínquo, que vem lá do fundo dos existires. Todos os dias mo conta, língua pronta, todos os dias mo recorda. Um sussurro ao ouvido da luta, um toque de rei contra o timbre da inveja. Saliva confidente, sorve-me a cera e a pressa e as sombras. Num ápice é tempo de pôr a mesa e cortar rente o final do dia. O que diz o segredo? Pouco importa. Até porque, infortunadamente, não vos poderia contar. Senão deixaria de ser o que é: um segredo.

Sem comentários:

Enviar um comentário