sábado, 5 de maio de 2012

Dia 9 no Indie - Quando as formigas vão para sítios altos é porque o rio vai subir


 Talvez tenham bastado dois filmes para que o russo Victor Kossakovsky se tenha tornado um dos maiores nomes do documentário contemporâneo. Falamos de Belovy (1994) sobre a vida de uma agricultor russo e seu irmão, e Wednesday 19.07.1961, que segue as vidas de 74 pessoas de Leningrado que nasceram no mesmo dia do realizador. Deste então a cada nova obra as expectativas crescem. Tal foi o caso com Vivan las Antipodas!, exibido ontem na Londres na Secção Pulsar do Mundo (repete no domingo, pelas 14:30, no mesmo Londres). Kossakovsky explica que estava um dia numa vila argentina e que, ao ver um homem pescar numa pequena ponte, pensou o que aconteceria se estendêssemos a linha até ao outro lado do mundo, que imagem nos aguardaria? Nasce assim a ideia de procurar os poucos pontos do planeta onde os antípodas (locais perfeitamente opostos no planeta em linha recta) correspondem a duas regiões em terra. Como diz ainda o realizador: "por vezes uma ideia entusiasma mas a realidade acaba por mostrá-la menos capaz do que pensávamos inicialmente. Com Vivan La Antipodas! foi o oposto" e os pares de antípodas (Argentina/China; Espanha/Nova Zelândia, Hawaii/Botswana, Chile/Rússia) e suas personagens - pescadores solitários, guardadores de faróis, vendedores de peixe, agricultores, etc. - habitam os espaços exatos para lhes extrair essas imagens “opostas” que estavam na mente do realizador. Perante tal realidade há duas posturas. Por um lado, é possível ser ansioso, amante do sentido e da seriedade convencional, da “horizontalidade” e não ver no filme no Kossakovsky mais do que poema visual e sonoro, sem limites ao seu lirismo, histriónico, encantatório, uma jiga joga que usa o mundo como “recreio” da criação. Mas por outro lado, até pelo cuidado de citar Lewis Carrol no início, Victor Kossakovky quer abolir a ditadura da horizontalidade nos seus planos, quer explorar à la limite o uso de sons autóctones rasgando-lhes a origem e dando-lhes outra dimensão visual (como seria se o tango fosse chinês?), percorrendo de uma ponta à outra do mundo apagando as metáforas e extraindo dele linhas, tons, texturas comuns. No Hawaii a lava negra arrefecida assemelha-se à pele de um elefante envelhecido no Botswana. Na Nova Zelândia uma baleia morre e vem dar à praia, enquanto no seu oposto, em Espanha, as borboletas pousam na rocha. Estas imagens que se vão formando e estilhaçando de uma ponta à outra do mundo, ao contrário de filmes como a trilogia de Godfrey Reggio (Koyaanisqatsi, Powaqqatsi, Nagoyqatsi), Baraka de Ron Frickle, ou ainda a opus ensemble que é Life in a Day, não querem ser testemunho de nada, nem da beleza do mundo ou da sua integridade. O gesto da realização de Kossakovsky é outro e por isso abisma: é sempre na linha da intimidade que o russo trabalha, lutar pelos momentos de individualismo no maior palco possível, esse tal mundo como “recreio”. 

Nota: dava jeito que gente como Iñárritu, antes de efabular com tantas certezas sobre como somos assim e assado, como uma espécie de “astrólogo invertido”, desse uma vista de olhos nisto.    

 
Kleber Mendonça Filho é crítico, programador de cinema no Recife e após várias curtas-metragens eis que se estreia no grande formato com O Som em Redor que arrecadou o prémio FIPRESCI no Festival de Roterdão deste ano. Este “slice of braziliana”, como vem etiquetado, é um filme bem escrito, em mosaico, que tenta recriar com realismo o ambiente protegido de alguma classe privilegiada brasileira e os seus “bunkers”, leia-se condomínios privados com equipa de segurança e tudo. A comandar a "famiglia" está o ancião Francisco que protege os netos que vivem na mesma rua e ordena o que pode e o que não pode. Se começámos por destacar o argumento do O Som em Redor é porque ele cria situações e personagens suficientemente importantes para, sem inovar, poder expor o que o trouxe a Portugal: a sua montagem sonora como sintoma de permeabilidade da arquitetura deste espaço,  ela por sua vez sintoma da constituição de redes emocionais assentes em tiques sócio-urbanos. Agora arrisquemos uma ideia: o filme de Kléber é uma espécie de Requiem for a Dream mais perspicaz pois prescinde da adição. Naquele, as portas, as máquinas de lavar, os ascensores, os apitos anti-cães, o barulho de fundo dos plasmas ritmam essa atmosfera de desconcerto, parecendo poluir o agir do microcosmos que o cineasta brasileiro tem debaixo de olho. E nesse processo filma-se, helás! a “contaminação psicanalítica” da riqueza, embora isso já sejam contas de outro rosário...

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