Talvez
tenham bastado dois filmes para que o russo Victor Kossakovsky se tenha tornado
um dos maiores nomes do documentário contemporâneo. Falamos de Belovy (1994) sobre a vida de uma
agricultor russo e seu irmão, e Wednesday
19.07.1961, que segue as vidas de 74 pessoas de Leningrado que nasceram no
mesmo dia do realizador. Deste então a cada nova obra as expectativas crescem.
Tal foi o caso com Vivan las Antipodas!,
exibido ontem na Londres na Secção Pulsar do Mundo (repete no domingo,
pelas 14:30, no mesmo Londres). Kossakovsky explica que estava um dia numa
vila argentina e que, ao ver um homem pescar numa pequena ponte, pensou o que
aconteceria se estendêssemos a linha até ao outro lado do mundo, que imagem nos
aguardaria? Nasce assim a ideia de procurar os poucos pontos do planeta onde os
antípodas (locais perfeitamente opostos no planeta em linha recta) correspondem
a duas regiões em terra. Como diz ainda o realizador: "por vezes uma ideia
entusiasma mas a realidade acaba por mostrá-la menos capaz do que pensávamos
inicialmente. Com Vivan La Antipodas!
foi o oposto" e os pares de antípodas (Argentina/China; Espanha/Nova Zelândia,
Hawaii/Botswana, Chile/Rússia) e suas
personagens - pescadores solitários, guardadores de faróis, vendedores de peixe,
agricultores, etc. - habitam os espaços exatos para lhes extrair essas imagens
“opostas” que estavam na mente do realizador. Perante tal realidade há duas posturas. Por
um lado, é possível ser ansioso, amante do sentido e da seriedade convencional,
da “horizontalidade” e não ver no filme no Kossakovsky mais do que poema visual
e sonoro, sem limites ao seu lirismo, histriónico, encantatório, uma jiga joga
que usa o mundo como “recreio” da criação. Mas por outro lado, até pelo cuidado
de citar Lewis Carrol no início, Victor Kossakovky quer abolir a ditadura da
horizontalidade nos seus planos, quer explorar à la limite o uso de sons autóctones rasgando-lhes a origem e
dando-lhes outra dimensão visual (como seria se o tango fosse chinês?),
percorrendo de uma ponta à outra do mundo apagando as metáforas e extraindo dele
linhas, tons, texturas comuns. No Hawaii a lava negra arrefecida assemelha-se à
pele de um elefante envelhecido no Botswana. Na Nova Zelândia uma baleia morre
e vem dar à praia, enquanto no seu oposto, em Espanha, as borboletas pousam na
rocha. Estas imagens que se vão formando e estilhaçando de uma ponta à outra do
mundo, ao contrário de filmes como a trilogia de Godfrey Reggio (Koyaanisqatsi, Powaqqatsi, Nagoyqatsi),
Baraka de Ron Frickle, ou ainda a opus ensemble que é Life in a Day, não querem ser testemunho de nada, nem da beleza do
mundo ou da sua integridade. O gesto da realização de Kossakovsky é outro e por
isso abisma: é sempre na linha da intimidade que o russo trabalha, lutar pelos
momentos de individualismo no maior palco possível, esse tal mundo como “recreio”.
Nota:
dava jeito que gente como Iñárritu, antes de efabular com tantas certezas sobre como
somos assim e assado, como uma espécie de “astrólogo invertido”, desse uma vista
de olhos nisto.
Kleber
Mendonça Filho é crítico, programador de cinema no Recife e após várias
curtas-metragens eis que se estreia no grande formato com O Som em Redor que arrecadou o prémio FIPRESCI no Festival de
Roterdão deste ano. Este “slice of braziliana”, como vem etiquetado, é um filme
bem escrito, em mosaico, que tenta recriar com realismo o ambiente protegido de
alguma classe privilegiada brasileira e os seus “bunkers”, leia-se condomínios
privados com equipa de segurança e tudo. A comandar a "famiglia" está o
ancião Francisco que protege os netos que vivem na mesma rua e ordena o que
pode e o que não pode. Se começámos por destacar o argumento do O Som em Redor é porque ele cria
situações e personagens suficientemente importantes para, sem inovar, poder
expor o que o trouxe a Portugal: a sua montagem sonora como sintoma de
permeabilidade da arquitetura deste espaço,
ela por sua vez sintoma da constituição de redes emocionais assentes em tiques
sócio-urbanos. Agora arrisquemos uma ideia: o filme de Kléber é uma espécie de Requiem for a Dream mais perspicaz pois
prescinde da adição. Naquele, as portas, as máquinas de lavar, os ascensores,
os apitos anti-cães, o barulho de fundo dos plasmas ritmam essa atmosfera de
desconcerto, parecendo poluir o agir do microcosmos que o cineasta brasileiro
tem debaixo de olho. E nesse processo filma-se, helás! a “contaminação
psicanalítica” da riqueza, embora isso já sejam contas de outro rosário...
Sem comentários:
Enviar um comentário