Mais
um dia de competição e mais uma talhada a essa “coisa” ainda apelidada de
instituição: a família. Desta vez coube ao austríaco Sebastien Meise com Stillleben (Natureza Morta). Bernhard,
rapaz dos seus trinta anos, descobre uma carta que o pai sexagenário escreveu a uma
prostituta. Na carta ele pedia-lhe que fizesse uma data de coisa, como é normal
nestes casos, mas chamava-a de Lydia, o nome da sua filha e irmã de Bernhard.
Está exposto o nó do conflito: o assédio em criança de Lydia pelo pai. Diz-nos
o air du temps que o abuso sexual de
menores começa lentamente a ser mais um tema que o cinema vem desconstruindo,
“embrulhando-o” no discurso que relativiza culpas e julgamentos isentos. Um
pouco como vem acontecendo com o próprio assassínio em série, com algumas obras
de subjetivizam e empatizam o olhar do
criminoso. Digamos de outro modo: um gigantesco movimento que já começou pelo
menos nos anos 60 e que, lentamente, faz ver o “mal”, venha ele de onde vier e atinja seja quem for, como uma entidade digna de
compreensão. Mas não nos afastemos. A primeira obra de Meise tem essa
“preocupação amoral”, sempre expressa através da espectralização das
personagens, dos esparsos diálogos entre os membros da família, dos espaços de
penumbra ou luz sórdida. Percebemos que haja uma natural aproximação ao que o
realizador quer expor mas duvidamos que essa frieza austríaca exposta tenha
algo a revolver no seu interior. Ou por outra, da "natureza morta" em Stillleben, nem assistimos à sua morte,
nem nos parece conter, na formalidade e contenção dos seus planos, alcance
suficiente para essa tarefa de contaminar o maniqueísmo dos atos. Ainda assim,
diga-se que o plano final, sobretudo pela presença de Fritz Hortenhuber (o pai), parece trazer-nos uma leitura
retrospectiva de todo o filme com esse filtro do sentimento, ainda que contido.
Parece é, claro, tarde demais para assumir ou ressuscitar a natureza e as
atrações familiares/sexuais. Embora não tenhamos visto Michael, de Markus Schleinzer, pelo que lemos aqui, a hipótese de uma double bill não seria mal pensada.
Ontem
foi ainda tempo de espreitar o último documentário de Denis Côté, Bestaire. A primeira sequência, cujo
som depois fecha o filme, mostra-nos um grupo de jovens que desenha o modelo de
um animal embalsamado no centro da sala. Quando a câmara de Côté vai para o
exterior, o parque Safari no Quebec, começamos por ver Bestiaire na sua proposta de circuito de olhares: humano, animal,
mecânico (da câmara) e como estes se entre-afectam. Não está em causa um olhar
sobre o espaço que mantém os animais (Zoo,
de Frederick Wiseman, 1993), nem a proposta de equivalência de estatutos
homem/animal (Zoo, de Bert Haanstra,
1962). Antes, o filme do francês parece quer visualmente participar desse
diálogo encetado pelas ciências naturais e humanas, sobre qual a fronteira
ontológica entre o homem e o animal, o que os diferencia, como é que o seu
olhar “fechado”, insondável, é apanhado pelo olhar “aberto” do humano, ou
ainda, pelo olhar sem gaze, da
neutralidade aparelhística da câmara de filmar. Recentemente traduzido entre
nós O Aberto, de Giorgio Agamben,
procura precisamente trabalhar essa fronteira homem/animal, reposicionando fronteiras
e operando uma crítica aberta à maquina antropológica que “embate” sempre nessa forma humana de
posicionar o animal no mundo. Embora o cinema, e especificamente a seleção pela
montagem, não permita a exclusão total do olhar humano, a continuidade do registo
das imagens do olhar animal, da sua presença, possuem esse potencial “inumano”.
Ou pelo menos de dois olhares, o animal e o mecânico em choque, como confronto
de duas presenças imperscrutáveis. Não deixa ainda de ser curioso que é também
quando o ser humano observa e regista o mundo, como na já referida cena
inicial, o momento em que este mais se encontra desprotegido, menos ator desse
tédio, de alteridade que, como refere Agamben, mais revela o aberto no humano
vedado ao animal. O olhar das avestruzes, macacos, lamas, o seu vai vem agitado
ou sereno, o seu movimento no espaço exíguo das jaulas dão a Bestiaire uma forma misteriosa que
conduz a sua montagem simultaneamente para uma “pureza” do género documental e
para um simulacro do que seria o “fechado” de uma obra artística.
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