Embora
não tenhamos visto ainda Shotgun Stories,
o filme que colocou Jeff Nichols na mira da cinefilia, há na sua segunda obra, Take Shelter, um potencial comparativo
com inúmeros filmes, géneros, quase interminável. Não que este seja um mero jogo
de referências mas sim um discurso particularmente hábil na forma de as baralhar, ao ponto de construir um "género" que tudo acolhe. É dessa mistura de
realidades (que compõe no fundo a Realidade) que é, em última instância, necessário
“procurar abrigo”.
Curtis
é um homem que prevê a eminência de uma enorme tempestade. Quando confrontando
com esse pesadelo de devastação quer defender a sua família e construir um
abrigo. Esta ideia obsessiva provém de um longo imaginário dos disaster movies que desde cedo trabalhou
uma espécie de complexo de culpa do ser humano face à manipulação tecnológica
da natureza. Obviamente que as duas guerras mundiais, a ameaça nuclear, introduziram
poderosas variações no tema. Recordamos, entre inúmeros exemplos, o episódio da
conhecida série The Twilight Zone
intitulado também The Shelter (1961).
Neste, a ameaça de um ataque nuclear põe várias famílias suburbanas contra a
única que possuía precisamente um abrigo. Se aí a catástrofe era um pretexto
para falar do pânico social, o filme de Nichols já surge num trajeto muito
distante que fala da natureza como sintoma da catástrofe do eu. Melancholia, de Lars von Trier,
abjecte-se ou louve-se, era também isto: a sensibilidade apocalíptica da
extinção da humanidade vertida para um estatuto ontológico. Essa disforia da
técnica mostra, em ambos os filmes, que a “resposta” da natureza tem
consequências interiores. Não é por acaso que Melancholia é um filme que se
segue à depressão do seu autor, ou que Curtis saiba que a ameaça Maior é menos
a natureza, de céu
digital revolto, e mais a linha de aparição/extinção da sanidade e da
loucura. Como documentar racionalmente, na primeira pessoa, a fuga da própria
razão? Supremo pesadelo esse, o de uma técnica que nos permitirá algures, ver-nos a nós
próprios a enlouquecer.
Mas
este trajeto de paranoia é ainda maior, ou surge em turbilhão, expandindo-se
incontrolavelmente.
É
que a tempestade que aí vem é a ameaça da ordem, da materialidade: é metáfora
crise, é metáfora digital, é metáfora de perturbação amorosa. Que fazer com
todo este resíduo poluente da metáfora? Podemos apenas falar do seguro de saúde
muito vantajoso do emprego de Curtis que permitirá à sua filha colocar uma prótese
auditiva ou das férias de Verão para o qual o casal poupa, ou mesmo das contas
feitas a quanto alimento é necessário por semana a um ser humano para sobreviver num refúgio. Podemos apenas pensar nas
condições que Samantha (a esposa de Curtis) põe para não sair de casa. Ou da
introdução das sequências digitais no universo classicista do cinema de Jeff
Nichols e não falar de como chocam. E podemos não o fazer pois não passamos
todo o tempo de Take Shelter à
espera de uma tempestade. Ou de um diagnóstico dos tempos e da pessoa. É possível
que ainda subsista uma certa vontade fetichista de romancear a última noite, os
últimos eventos, a derradeira crise da existência. Contudo, a força que nos
ocupa (nós todos) é bem mais a de perceber que traços permitem ligar todo este “mal-estar”.
E nesse trajeto apocalíptico, de sanidade, Nichols limita-se a mostrar o
enrodilhar como estratégia de exposição. E isso já é muito.
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