Ao
contrário de outros países como a República Checa, Polónia ou Hungria, que
mantiveram algum cinema oposicionista durante o período ditatorial, a Roménia
entre os anos 60 e 80 esteve perto do ocaso total. Não admira então que, após a
queda de Ceausescu, na revolução de 1989, se tenha respirado o "princípio do fim
do mundo", uma espécie de ano zero do cinema romeno. Contudo, haveria que
esperar mais quinze anos até que as crescentes estruturas de financiamento do
seu cinema, aliado à estrutural distância que os principais cineastas romenos,
agora na casa dos 40, mantinham face ao grande trauma do regime de opressão,
dessem frutos. E deram-no mais particularmente em 2005 através do
reconhecimento internacional que The Death of Mr. Lazarescu de Cristi
Puiu obteve através da prémio Un certain regard no Festival de Cannes. A
odisseia sarcástica pelo sistema de saúde burocrático que leva um paciente em
ambulância de hospital em hospital foi o primeiro filme romeno a obter
distribuição internacional em muitos anos e o início “oficial” do que se viria
a chamar o novo cinema romeno. Nos anos seguintes vários nomes importantes
surgiriam como Corneliu Porumboiu (12:08 East of Bucharest), Cristian
Nemescu (California Dreamin’), Cristan Mungiu (4 Months, 3 Weeks and
2 Days), só para citar os mais importantes.
Numa
entrevista há uns anos à Sight & Sound, Cristian Mungiu negava a
existência de um estilo próprio à nova vaga romena. Cada cineasta provinha de
escolhas e valores diferentes embora pudesse existir outras coisas em comum: o
humor, alguns mecanismos de rodagem, a atenção dada à representação, etc. Seja como
for, a revolução de 89 foi um impulsionador natural do universo criativo deste
grupo de cineastas, sendo que o retrato da realidade romena, surge pelo filtro
seguro, anti-traumático, da tragédia individual, vista a partir de uma ironia
construtiva. Como quem diz: “vejam que parvoíce que foi tudo aquilo...”
Este
prolegómeno serve sobretudo para contextualizar o aparecimento de Everybody
in Our Family, segunda longa-metragem de outro talento desta geração
romena, Radu Jude, na competição internacional do IndieLisboa. O filme estreado
na Berlinale este ano, prolonga uma relação entre o festival e o autor que
remonta já às suas curtas-metragens The Tube with a Hat (2006) e Alexandra
(2007) e à sua estreia no formato longo com The Happiest Girl in the World
(2008).
Everybody
in Our Family continua o tema privilegiado desta competição internacional,
a família, tema iniciático, ou não fosse a secção destinada exclusivamente a
primeiras ou segundas obras. Esta família, que a produtora do filme advertiu na
abertura da sessão ter pontos de contacto com a situação familiar do próprio Radu
Jude, parece resistir apenas na sua formalidade. Marius, um homem um pouco
alienado no mundo literário e na sua vaga depressão pela falta de trabalho,
reúne todas as suas energias positivas para o fim-de-semana com a sua filha
Sofia de 5 anos, um dos poucos momentos em que a lei ditou que possa estar
com ela em virtude do divórcio da sua mulher Otilia. O que parece ser um
momento idílico de repouso e comunhão parental transforma-se lentamente numa
espiral de claustrofobia e violência que revela a realidade dura e
implacável das relações familiares.
Mas
esclareça-se: esta escalada de tensão é um mecanismo útil e eficaz mas que
interessa sobretudo pensá-lo do seguinte ponto de vista: “para onde é que isto
nos leva?”. No filme de Radu Jude essa escalada não é para ser assunto de
auto-reflexão como em Funny Games de Haneke, por exemplo, nem sequer só
uma forma de montar um ataque à natureza do conflito familiar. Ela é, e nisso
reside o mais importante de Everybody in Our Family, um processo
constante de passagem do drama ao thriller e do thriller ao drama, criando uma
espécie de “thriller dramático” que espelha a complexidade que vai do sangue ao
amor. Nesse processo de transferências constantes e verdadeiramente infernais
não há forma de pensar a “direito”: é que a comunhão digna, da essência, cassavetiana, ao
passar pelo umbral de uma porta com uma câmara à mão pode transformar-se num monstro belo, num observar
emocionado e feliz do seu próprio enterro.
Além
disso, o despojamento formal de Jude, o estar sereno dentro de casa, a braços
com a luta dramática dos atores, permite investir nas nuances da realidade. É
daqui que se pode falar de um humanismo cinematográfico que o cinema romeno só
pôde fazer em contacto com uma liberdade recém adquirida e com um tédio
ocidental que ainda não os consumiu. É tão ou mais empático o perdedor Marius
que não consegue levar a filha de fim-de-semana como o é a ventoinha e o
aquário da sala da ex-mulher no qual se passa uma das sequências mais
relevantes do filme. É que o espaço confinado, a casa, da qual Radu Jude não
quer sair até esmiuçar os porquês de uma separação, é um espelho fortíssimo da
humildade, da falsa passagem da formalidade ao segundo plano que o cinema novo romeno parece veicular. Arriscamos que o
sucesso de público desta vaga de cinema romeno venha sobretudo daí: dessa
limpidez com que o um povo descreve a sua vida.
Ainda dessa passagem do drama ao horror faz também parte a dimensão sarcástica que só um
olhar adulto como o do cineasta romeno pode veicular, ao ajudar a relativizar as pequenas
grandes tragédias da vida. Nelas, eles como nós, o espectador, rimos com vontade de
chorar e choramos com vontade de rir. É também nessa inversão que se torna claro
que Everybody in Our Family é um dos mais fortes candidatos a vencer
este IndieLisboa ‘12.
Ainda
haverá mais uma oportunidade de ver este filme no dia 4 de Maio às 16:00 no S.
Jorge. Não percam.
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