terça-feira, 18 de julho de 2017

Nunca o terror foi tão longe como em Shoah





Desorientação. Embora "Shoah" comece sob o signo da música, mais concretamente com os relatos de Simon Srebnick, no seu regresso a Chełmno, campo de concentração perto de Łódź na Polónia, no qual entrou como um menino e do qual conseguiu sair, sobrevivente, devido à sua habilidade de cantar para os nazis, o certo é que desde os primeiros planos, quer Lanzmann, quer a sua câmara, começam a percorrer os antigos campos, os espaços verdes, as florestas, sob o signo da desorientação. A luz muito branca ou cinzenta acompanha esta espécie de estupefacção com que o realizador começa o filme: preciso de lá ir, pisar com os meus próprios pés o espaço na natureza onde milhões de judeus foram exterminados. Essa câmara meio periclitante, instável, desorientada, avançando, perguntando, parece precisar deste trajecto, de ir no comboio em que se chegava a Treblinka para morrer, sentir o peso da realidade para provar-se que aquilo aconteceu mesmo, que não foi tudo um sonho. Se essa desorientação me chamou a atenção o certo que é após as primeiras três horas de filme, páro e dou por mim dessa mesma forma. Desorientado, incrédulo com tantos relatos pormenorizados de crueldade. Dou por mim a pesquisar na internet rostos de nazis, responsáveis pela construção de crematórios, pela remoção de pilhas de cadáveres. A dada altura, também eu precisei de uma qualquer confirmação, como se interiormente me fizesse "ver para crer" pois de outro modo parece impossível que seres humanos reais, com cara, identidade, possam ter levado este extermínio adiante. Quem eram estas pessoas? Como foi possível que não sentissem nada? Que tipo de ser humano encara como projecto de vida e de futuro terminar com a vida de milhares de inocentes? Desorientado, senti-me um espectador desorientado: tudo foi tão perto, tão espacial e temporalmente perto. Penso nas pessoas que assistiram à 2ª Guerra Mundial, mesmo não participando nela (todos participámos nela, mesmo quem depois dela nasceu, como é o meu caso): como se sentiram em fazer parte deste triste espectáculo a que chamámos humanidade? Como puderam/podem dormir? Como não nos sentirmos desorientados?

Duração. Há bem pouco tempo falava de "Shoah" como um filme muito longo: 9 horas e 26 minutos. Como iria vê-lo? Às partes? Todo de uma vez? Iria conseguir aguentar a longa duração? Um logro. Bastam 15 minutos do documentário de Claude Lanzmann para perceber como é obsceno falar /abordar o filme pelo prisma da duração. A duração de "Shoah" muito claramente não se mede em minutos, ou melhor, na sucessão temporal das imagens que desfilam no ecrã. O problema da sua duração é outro. Mesmo que o filme apenas durasse esses tais quinze minutos ainda estaríamos a falar da sua impossível duração. Tratam-se de imagens reais captadas pela "câmara mental" dos sobreviventes e que são agora projectadas mentalmente no nosso cérebro, através dos seus relatos. Essas imagens têm uma duração eterna, quer dizer, ficam incrustadas na minha mente para sempre. É esse o horror da duração de "Shoah": ele corresponde a um evento que pela sua crueldade nos é relatado como uma visão infernal de eternidade, uma duração de algo que não se esgota.
  
Terror. É conhecida a expressão de Adorno de que não é mais possível a poesia depois de Auschwitz. Penso que também o terror se tornou impossível. Vejo dezenas de filmes de terror por ano e creio agora que não são mais do que  pálidas reproduções de qualquer coisa de quase inofensivo. A crise da representação instaurada na imagem em movimento após a extermínio judeu é isso: nenhum imagem pode já ir além do que são as detalhados relatos do que sucedeu em Treblinka, Dachau, Auschwitz. E escrevo de propósito: relatos. Estes, por transmitirem uma figuração mental a quem os ouve, ao espectador de "Shoah", prolongam ad aeternum (o problema da duração, o filme de terror eterno) as piores imagens que pudemos imaginar. E se costuma dizer-se que o pior terror é aquele que não se mostra, que se imagina, com "Shoah" a nossa pena de impotentes e culpados espectadores é esta: é que, além de imaginarmos o pior, nós sabemos que esse pior é/foi real. Ou seja, à nossa imaginação adicionamos a certeza de que essas imagens não são imaginação.

Enfim... desorientados, aterrorizados, culpados para sempre (a longa duração) é assim que saímos de "Shoah". "Saímos", que verbo tão irrealista este. De "Shoah" já não se sai.

Sem comentários:

Enviar um comentário