Consigo recordar com precisão a primeira vez que chorei com um livro.
Foi o Jane Eyre, de Charlotte Brontë,
que me deixou de rastos na parte em que a melhor amiga de Jane lhe morre dos
braços, durante o sono, na única noite em que esta dormiu junto dela. Era a
morte, num jogo duplo de beleza e tragédia. No entanto, do cinema, esse amor
maior, não tenho uma forte memória inaugural: tenho vários primeiros filmes, aos
quais nunca perdi a estima, quer pelo deslumbramento quer pelo impacto. Um
deles é o The River (1951), de Jean
Renoir, pois claro, mais uma vez pela transformação da morte de uma criança
numa tragédia fleumática, mas também Shanghai
Express (1932), onde vi pela primeira vez Marlene Dietrich, sob a luz
hipnotizante de Sternberg, ou Three Comrades
(1938), de Borzage, o filme em que adormeci e acordei no magnífico plano
final, com as quatro silhuetas a desvanecerem-se na paisagem de neve. Não
sairia daqui, se fosse ao baú… Mas lembro-me ainda de um outro, de Peter
Jackson – na altura em que vi, com 13 anos, não sabia quem era o realizador – Heavenly Creatures (1994). Foi um filme
que recebi com muita estranheza e fascínio, porque nunca tinha sentido o
arrepio na carne de testemunhar o romance contido e mágico entre duas raparigas.
E depois toda aquela inversão da fantasia em horror. Não o voltei a ver, mas
esta memória ficou-me agarrada à pele. Assim como a paixoneta que tive por
Johnny Depp em Eduardo Mãos de Tesoura.
Nos anos mais recentes, vi Fièvre
(1921), de Louis Delluc, na sala Luís de Pina da Cinemateca (onde vi tanto
cinema mudo), mais um que mexeu comigo, que me deixou transtornada pelo sentido
da ‘espera’ inscrito nessas imagens de um bar portuário. ‘Espera’ é uma palavra
que me leva à infância, à sala escura e ao meu pai, por quem sempre esperei que
voltasse da tal viagem. Essa de que os adultos não nomeiam o país.
Sei que o meu primeiro filme em sala foi o Rei Leão. Vi-o com ele, que morreu dois anos mais tarde, tal como o
pai do Simba. Eu não sabia, e pus-me a esperar. Alguns anos depois (tinha 6
quando comecei a ‘espera’), tomei a sala escura por catedral. Não como refúgio:
é aquela outra coisa que nasce em nós e não sabemos dizer.
Em Vilamoura, onde então morava, só havia um cinema, e ficava mesmo em
frente à empresa onde a minha mãe trabalhava. Ia ver tudo o que idade permitia, e sempre
que o fim da sessão batesse certo com o horário laboral dela. As cadeiras eram
de napa vermelha, e eu sentava-me invariavelmente ao centro, numa sala muitas
vezes vazia a meio da tarde. Guardava um lugar para o meu pai, e sorria para o
senhor que picava o bilhete à entrada, sempre espantado que uma menina da minha
idade não andasse na rua a brincar (como se isso ainda acontecesse no meu
tempo…). É verdade que nunca andei na rua a brincar, mas muitos filmes, e
também fotografias de Robert Doisneau, deram-me a
conhecer essa liberdade. Não sou uma infeliz.
Um dia vi em casa O Vale era
Verde, de John Ford – que bem mais tarde voltaria a ver na Cinemateca – e
nunca um filme me aproximou tanto das memórias que não tive. Aquele é o vale
onde sou Huw (Roddy McDowall), e aprendo a rezar antes de deitar a mãozinha a
uma fatia pão, sob o olhar, primeiro sério, e depois terno do pai. «Men like my
father cannot die», diz ele no fim. É por isso que guardo sempre um lugar para
o meu na sala escura.
Inês N. Lourenço *
* A Inês é crítica de cinema no Diário de Notícias e na Antena 2 onde mantém a rubrica "A Grande Ilusão".
Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
Sem comentários:
Enviar um comentário