Se alguém (provavelmente em desespero de causa, para quebrar o gelo no meio de uma conversa em ponto morto) me perguntasse qual foi o primeiro filme ao qual colei o epíteto de “filme de minha vida”, a minha resposta seria imediata e vibrante: Rumble Fish.
Mais do que o primeiro “filme da minha vida”, foi aquele que conferiu sentido a esta expressão, que tem o defeito de estar muito gasta e pender para a grandiloquência, mas tem também a virtude da exactidão e da concisão: confina o seu âmbito a dois elementos (o filme e a vida) e a uma relação que é de pertença. É assim que deve ser.
Onde o vi pela primeira vez? No Quarteto, provavelmente; na estreia, por certo. (Recordo-me de uma crítica devastadora de Eurico de Barros no Semanário que me deixou furibundo.) Correria o ano de 1986 (a acreditar no IMDB). Eu estaria a caminho dos quinze anos de idade. Uma idade tão boa como qualquer outra para se perceber que o cinema é algo mais do que uma maneira inofensiva de passar o tempo.
Rumble Fish é, tal como a longa-metragem anterior de Coppola (o muito menos interessante The Outsiders), baseado nos romances fortemente autobiográficos de S.E. Hinton. O enredo gira em torno das lutas de gangues na América profunda (Oklahoma) e está longe de ser um prodígio de originalidade. Contudo, arrojo formal do filme distingue-o de forma abrupta do seu antecessor e chocou a imprensa especializada que, na sua maioria, se entreteve a espezinhar o filme, com um desdém que só foi superado pelo do público (2 milhões e meio de dólares de receita, um quarto do orçamento de produção; The Outsiders custou o mesmo e arrecadou mais de 33 milhões). Hoje somos todos muito sofisticados e já todos vimos Wong Kar-wai e Leos Carax. Um filme como este não corre o risco de fazer erguer uma sobrancelha que seja. Na altura, o preto-e-branco contrastante, as brevíssimas inserções coloridas, as nuvens velozes filmadas em “time-lapse”, pareceram extravagâncias escandalosas ou insultos ao bom gosto.
Creio que nunca voltei a ver Rumble Fish na íntegra. Talvez nunca o faça. Tenho medo de que um novo visionamento equivalha a revisitar o adolescente impressionável que estava (sem o saber) à espera de algo tão gloriosamente estranho, barroco e exagerado para começar a amar o cinema. Desconfio que a minha reacção perante o simbolismo pesado (os peixes, a motorizada à beira do oceano) seria de enfado e destruiria o encanto fundador.
Não será uma atitude muito racional. Seja. Expliquem-me o que tem a cinefilia a ver com a racionalidade e a sensatez, e depois conversaremos.
Alexandre Andrade *
* Alexandre Andrade é professor universitário na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, autor de vários romances e livros de contos, entre os quais o mais recente "Cinco Contos Sobre Fracasso e Sucesso". Além disso mantém o conhecido umbloguesobrekleist, e é co-autor do blogue cinéfilo Um Cinéfilo Preguiçoso.
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