Terei cuidado para isto não ser um “cinema paraíso”, mas é
verdade que os filmes começaram por me chegar de carrinha. O altifalante
começava a anunciar o espectáculo pela manhã à entrada da vila, e a realidade
era alterada. À noite o ecrã era içado no bazar. Os mosquitos eram dali. Já as
cadeiras — de praia — tinham os espectadores que as levar: miúdos sentados à
frente, mães atrás, pais ainda mais na retaguarda e de pé (este não compromisso
total com o espectáculo devia ser sinal de autoridade).
Isto foi nos anos 70, à beira do Índico, entre o mar e a
selva, na moçambicana província da Zambézia.
Há ainda filmes que hoje secretamente me murmuram que já os
tinha visto — não porque reconheça sequências, é subterrâneo. A periodicidade
do cinema ambulante era incerta, isso tornava o acontecimento mais violento. É
impossível saber exactamente o que vi e de que actualidade cinematográfica
estou a falar — estávamos perdidos no “mato”, sem tempo. Mas sei que fui
exposto.
“Ben-Hur” será sempre um filme “pesado”, porque, quando hoje
dou de caras com Charlton Heston na arena, sinto ainda o aperto dos sapatinhos
novos de verniz — uma forma muito sensorial de experimentar o “academismo”.
“Django”, antes de ser um “filme de culto” realizado por Sergio Corbucci, antes
de ser western spaghetti (só anos depois identificaria essa terminologia e
identificaria Franco Nero), foi uma vaga de onomatopeias: eram assim recebidas
as cowboiadas, os espectadores incentivavam, ajudavam, durante os murros; um
western era um concerto de estádio.
Há filmes que nunca vi no bazar porque o senhor do cinema
ambulante nunca cumpriu as promessas, apesar de vários pedidos. Por isso se
tornaram míticos (até se desvanecerem ao tardio primeiro encontro): por
exemplo, "Música no Coração".
Mas há um filme que vi e que nunca esqueci, apesar de ter
esquecido o título daquilo que tinha visto e ter andado anos à procura de um
reencontro. A experiência tinha sido devastadora, percebi sempre. As ondas de
choque reverberaram pela adolescência. Mesmo quando parecia que tudo se tinha
desvanecido na memória, a “cena da árvore” ressurgia.
“A cena da árvore”, era assim que eu falava com a impressão
desse filme em mim: dois miúdos, dois irmãos, órfãos de mãe, uma solidão
dourada; no triste abandono dos privilegiados, nas brincadeiras, um testou os
limites de um ramo de árvore, que cedeu, caiu sobre as rochas de um riacho, a
coluna vertebral danificou-se, o menino ficou imobilizado (depois acontece o
que acontece nos finais lancinantes.)
Esse fim era apenas o culminar da odisseia de angústia que
foi essa noite no cinema. Através da história de dois órfãos com o mundo
abalroado pela morte da mãe, um filme escancarou (os meus) medos. Esse filme
foi, é, “Incompreso” (1966), de Luigi Comencini. Levei anos a identificar o
título, na altura em que comecei a saber quem era Comencini. Levei mais alguns
a reencontrar o filme — um amigo sacou-o da Net e mandou-mo. Ainda hoje não
tenho “Incompreso” na colecção de edições oficiais da obra de um cineasta
muitas vezes aparentemente ligeiro, mas profundamente melancólico e mais
difícil de “arrumar” do que Dino Risi ou Mario Monicelli, colegas da chamada
“comédia à italiana” — que em si já foi um território de confusão de géneros.
Quando o reencontrei, vi que continuava tudo em “Incompreso”, como na primeira
vez. Mas agora sei que Comencini realizou comédias e melodramas (e melodramas
sociais, “Delitto d’amore”, de 1974, é sublime...), agora sei que Comencini é
sempre justo perto da infância — mesmo nos filmes em que as crianças estão em
background — e que “Incompreso” e os esplêndidos, esplêndidos, “Infanzia,
vocazione e prime esperienze di Giacomo Casanova, veneziano” (1969) e “Le
avventure di Pinocchio” (1972), adaptação da história de Carlo Collodi sobre o
boneco de madeira esculpido a partir de um tronco de árvore que sonha em ser um
miúdo de verdade, são angustiantes experiências sobre a descoberta, sobre a
vida, as prisões que nos confortam e a liberdade que se apresenta e nos
paralisa. São também aventuras de invenção cenográfica, de um fulgurante
“artesanato” — em “Le avventure di
Pinocchio”, por exemplo, um cenário naturalista alberga e constrói a fábula.
Estou a ver-me naquela noite de mosquitos no bazar de Pebane
(era o nome da terra): hoje sei que naquela sala — negros sentados no chão à
frente, depois os meninos brancos nas cadeiras e o resto da sociedade colonial
local —, e tal como na casa familiar de “Incompreso” que Comencini filma como um
túmulo (é um filme com peso “viscontiano”), viviam-se os últimos dias de um
mundo.
Vasco Câmara *
*Crítico de cinema no jornal "O Público" e editor do suplemento "Ípsilon".
Vasco Câmara *
*Crítico de cinema no jornal "O Público" e editor do suplemento "Ípsilon".
Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
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