Começo pedindo desculpas ao Carlos e
aos leitores, pois esta rubrica não tem como ser realmente uma Árvore “da
Cinefilia”.
As lembranças vêm e vão e, com elas,
algumas palavras – que podem vir em forma de nomes, lugares, rostos e sensações
mais ou menos familiares – vêm em seguida... Tudo ainda um tanto embaçado,
amontoado, num alinhamento difícil de traçar, ou retraçar.
É necessário começar de algum ponto,
entretanto.
Neste instante a TV está ligada, sem
som, no canal TCM. Vejo, de esguelha, o Christine do John
Carpenter (logo antes foi exibido, no mesmo canal, Vampiros).
Escrevo em um laptop ouvindo pelo Youtube a trilha sonora do Dawn
of the Dead do Romero.
Em 2017 um canal de TV que exibe filmes
antigos e um computador ligado a uma plataforma de acesso a vídeos possibilitam
o contato com algumas peças importantes da minha formação de espectador.
(É estranho pensar que um filme de 1983
que assisti pela primeira vez na TV aberta brasileira em 1995, um filme de 1998
que vi em cinema pela primeira vez em 1999 já são filmes “antigos”, mas esse é
um assunto para outro momento, ou talvez para momento algum...)
Mas, voltando, em 1998 esse cenário
estava longe de sequer poder ser vislumbrado.
Uma árvore, sabemos, não se constitui
apenas pela raiz – ela se forma pelo tronco, com os galhos, as folhas que
balançam, caem, e renascem.
Nesse sentido, o que está na raiz da
minha formação de espectador é algo muito distinto do cinema, da liturgia da
sala, da cerimônia e do ritual que a Maria João Madeira descreveu tão bem.
Se for mesmo à raiz, lembrarei muito mais de color bars, caracteres
amarelos com avisos referentes aos direitos autorais da fita, trailers com
narrações guturais, ruídos e chiados no início e fim de cada gravação...
Enfim, a minha árvore tem a sua raiz
não no cinema e, portanto, não na cinefilia, mas nas madrugadas passadas em
frente à televisão e nas tardes em que vasculhava prateleiras de
vídeo-locadoras, não para encontrar algum filme específico, mas para ser levado
por um conjunto de possibilidades, a serem averiguadas e devidamente recusadas
ou aceites pelas capas e contracapas, pelas sinopses, pela presença de um ator
ou o nome de algum realizador mais conhecido, pelo charme de coisas como a ação
do tempo sobre uma capa ou o selo de uma distribuidora, sempre com a certeza de
que os próprios filmes me levariam às escolhas certas (ainda era a época de se
acreditar em “escolhas”, “certas” ainda por cima, sem falar que não eram os
filmes que me guiavam, mas o vídeo e toda a cultura em volta).
Talvez a minha árvore tenha a sua raiz
numa boca de lobo, pois havia muito pouca cinefilia propriamente dita na minha
relação com o cinema. Eu estava certamente mais para um rato de locadora,
ávido, com todos os guias de vídeo e todas as idiossincrasias típicas (saber em
qual prateleira poderia encontrar tal fita, e isso em todos os acervos de todas
as locadoras à minha disposição – veleidades, sem dúvida, mas que agora parecem
tão preciosas...).
Isto me levou a uma série de encontros
felizes. Em alguma madrugada de 1993 ou 94 vi o Blow Out do De
Palma, filme ideal para justificar a insônia até 3 da manhã, só para poder
assisti-lo sem cortes (somente na madrugada um filme com aquele início poderia
ser exibido na TV aberta, e foi assim – sem cortes, com o plano-sequência
inicial completo, que o vi). Cerca de um ano ou um ano e meio depois foi
o Profondo rosso do Argento em um VHS gasto, pré-histórico,
escondido em algum buraco empoeirado de uma locadora gigantesca. O choque foi
ainda maior, e mais duradouro.
Eu poderia fazer este texto sobre
qualquer um desses dois filmes – filmes sobre o ato de ver, filmes sobre a
visão como obsessão e guia, como construção e porta aberta à imaginação, como
delírio e fascinação. São filmes que deram um sentido à experiência do vídeo, à
fantasia do cinema refratada pelos pormenores do analógico, e mais até do que
essa filtragem pelo vídeo, deram um sentido a uma maneira de ver e de sentir
que parece compartilhada mesmo pelas personagens interpretadas por John
Travolta e David Hemmings, cujas percepções já dão sinais de pertencer mais a
um domínio eletrônico e virtual que a um domínio concreto e material.
A partir dessas duas experiências
agreguei outros autores para fazer companhia a esses dois “pioneiros” (era
assim que eu os encarava) do grande campo de batalha analógico: acho que Landis
foi o primeiro (com American Werewolf in London), e mais tarde
vieram Cronenberg, Carpenter, Romero (e ainda um pouco mais tarde Bava, Fulci,
Soavi)...
O cinema e a relação com a sala, com a
ampliação da película fotoquímica, o grão ao invés do ruído, era algo que ainda
estava por vir e que só viria de forma intermitente: o choque que tive com Blow
Out nos idos de 93/94 foi prolongado pelo assombro com Snake Eyes,
visto em uma sala de cinema já no fim de 1998; aos nomes de Romero, Carpenter e
Argento somaram-se, mais tarde, outros que descobri de forma menos metódica,
mas não menos aferrada, como Brisseau, Verhoeven, cujos filmes eu pude ver no
cinema, e cujo entendimento deu-se já em um outro contexto.
Talvez a raiz da minha cinefilia se
chame, afinal de contas, Alfred Hitchcock, a se julgar por todos esses
cineastas que abordam com obsessão e violência o mistério, imaculado ou
violado, da imagem interditada.
Mas não é disso que quero falar.
Deve ter sido nas férias de 1998.
Estava viajando para a casa do meu pai de ônibus. Ficaria o final de semana com
ele, e provavelmente chegaria a tempo de passar na locadora para pegar algum
filme.
Meus favoritos, invariavelmente, eram
os de terror: as capas extravagantes, o exotismo de alguns, a escatologia de
outros, tudo o que poderia seduzir um adolescente estava lá, naquelas capas,
naqueles encartes.
A locadora da cidade em que meu pai
morava não era muito grande, pelo menos não como as da cidade em que eu morava,
mas era aconchegante o suficiente para que um acervo que pendia de forma
conveniente entre o banal e o inusitado (foi por esse acervo, aliás, que pude
ver o primeiro Chabrol, Ride in the Whirlwind e Iguana, o Pat
Garrett do Peckinpah, Casino, o Dangerous Game do Ferrara, o
próprio American Werewolf...) parecesse um acervo ideal (embora eu
acredite hoje que ele não se esgotou mais cedo aos meus olhos porque eu visitava
o meu pai apenas nos fins de semana).
Na prateleira do género “horror” havia
essa fita – ou melhor, essa capa, com essa imagem – que tinha tudo o que
naquele momento poderia satisfazer um rato sedento como eu: um zumbi de olhos
arregalados com um facão no meio do crânio, a boca aberta na tentativa de
emitir um grito de dor que parecia não ter como sair, o sangue escorrendo pela
testa...
Olho as informações da capa, e
surpreendo-me com a duração do filme: 138 minutos. Olho a contracapa: zumbi
vestido de noiva, de executivo com terno e gravata, zumbi com pulôver e
cachecol. Fechando com chave-de-ouro, a imagenzinha de um policial negro com
mais de dois metros de altura e munido até os dentes carregando num carrinho de
mão um policial branco baixinho que empunha uma arma...
138 minutos disto?
Não por nada, mas meu pai teve que
aguentar muitos fins de semana assim – abandonado pelo filho que tinha ido
visitá-lo. Afinal de contas, o companheirismo poderia ficar para outra hora
(ainda era a época de se acreditar em “deixar para outra hora”... A não ser que
se tratasse de algum filme).
Já falei de choque e de assombro sobre
De Palma e Argento. Não vou me repetir, até porque todos que já assistiram a um
filme do Romero, e ao Dawn of the Dead em particular, sabem do
estado quase hipnótico ao qual a sua Arca de Noé alegórica aliada ao som dos
Goblins pode levar.
Não posso dizer que foi a sessão
decisiva da minha vida, ou que foi dela que nasceu o que viria a ser a minha
cinefilia, ou que foi a partir desse momento que deixei para trás meus hábitos
de luminar das prateleiras das locadoras.
Posso dizer, entretanto, que a surpresa
e o prazer que Dawn of the Dead me proporcionou quando o vi pela
primeira vez são coisas nas quais ainda me fio quando vou assistir outros
filmes, novos filmes, independente de procedências e precedências.
Porque talvez numa árvore da cinefilia,
mais do que as raízes e as folhas, o que vale são os troncos.
Bruno Andrade*
*Bruno Andrade é só um dos mais inteligentes críticos de cinema brasileiros da actualidade. Além de editor da revista de cinema Foco, manteve durante vários anos um dos mais interessantes blogues de cinema em língua portuguesa o signo do dragão.
Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
# 11 Ricardo Vieira Lisboa
#12 Daniel Curval
#13 Inês N. Lourenço
# 14 Alexandre Andrade
# 15 Vasco Câmara
#12 Daniel Curval
#13 Inês N. Lourenço
# 14 Alexandre Andrade
# 15 Vasco Câmara