segunda-feira, 26 de junho de 2017

Tinta da ironia



Estavas aí sentado e entraste em desespero: acabou-se-te a tinta da ironia. Quando olhaste no fundo do saco dos anos já só viste a vertigem de um doce sarcasmo que te acompanhava na viagem. Toda a Europa interior, de ruas iluminadas por piscares de olhos facturantes, ameaçava pousar de vez no mapa, inerte. As pás oficiais das tintas e das teclas cavam agora, como toupeiras, uma distância de segurança. Por moda ou subserviência, a revelação ganhara o brilho da inútil memorabilia e as crianças nascem adultas. Já os adultos são de imediato velhos camufladas com vestes de "isso, já eu sei". A areia escalda mas as sandálias da escrita torpe não deixam ver os ardores. Tudo jaz em corpos queimados, untados pelo protector brilho do "já nada me surpreende", do desdém-passaporte para o país dos contemporâneos e dos sóbrios prevenidos.

Estás aí sentado e escreves já seco e à primeira, pois que se te acabou o corrector da ingenuidade. Esse limpa-neves que já só em vão desencarde os atritos do amor, da lágrima e da pedra que floresce. Tarefa diária, propões então: lavar os dentes; remover com a espátula do pensamento as camadas que escondem o Paraíso da rua deserta, a Alexandria atravancada de Mercedes e óculos de sol; por fim, deixar entrar o sol que é arma. Que revela. Que destrói. Ilumina.

Sem comentários:

Enviar um comentário