terça-feira, 13 de junho de 2017

Árvore da Cinefilia #10- João Lisboa


Poderá não ser extraordinariamente exacta do ponto de vista histórico mas a tremenda tirada de Orson Welles/Harry Lime, aos pés da Grande Roda do Prater, permanecerá como uma das mais inquietantes interrogações sobre as virtudes da democracia e da liberdade: "You know what the fellow said – in Italy, for thirty years under the Borgias, they had warfare, terror, murder and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci and the Renaissance. In Switzerland, they had brotherly love, they had five hundred years of democracy and peace – and what did that produce? The cuckoo clock".

 Não é essa, porém, a única das imensas qualidades de O Terceiro Homem. A começar pelo genérico: a cítara alpina, tocada por Anton Karas – descoberto durante a rodagem do filme, em Viena, o que conduziu Carol Reed a repensá-lo integralmente –, com o instrumento filmado em grande plano e o ataque das notas subtilmente desfasado em relação ao movimento das cordas que se observa. E prosseguindo, naturalmente para o omnipresente (e infinitamente desdobrado) “tema de Harry Lime”, caricatura musical da Viena do pós-guerra, a sofisticada e cosmopolita "Viena das valsas", agora retratada por uma música, inexplicavelmente feliz,  de vago recorte "étnico". "Não conheci a Viena de antes da guerra, a de Strauss", diz o americano Holly Martins/Joseph Cotten, que só lá chegou quando ela já se encontrava “bombed about a bit”. Já na ofegante perseguição (e eliminação final) de Harry Lime pelos esgotos de Viena, não há uma única nota de música mas tudo nela é exuberante jogo sonoro de passos, gritos, ecos, água, e tiros. Sem efeitos sonoros, opressivamente realista. É, talvez, por tudo isto que quem quer que seja que coloque O Terceiro Homem no seu “all time top 10” merece a minha instantânea admiração.

João Lisboa *

* João Lisboa é um dos mais geniais críticos musicais que Portugal alguma vez teve. A par disso, o seu blogue Provas de Contacto é um espaço de finíssima e mordaz crítica política.

Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
                                    #2 Pedro Correia.
                                    #3 Carlos Alberto Carrilho
                                    #4 Álvaro Martins
                                    #5 Leandro Schonfelder
                                    #6 Samuel Andrade
                                    #7 Vítor Ribeiro
                                    #8 José Marmeleira
                                    #9 Maria João Madeira

2 comentários:

  1. Um comentário que bem poderia não existir, mas existe:

    o João Lisboa, como tu, escrevem como príncipes, são pessoas apaixonadas pelo que escrevem, e isso vê-se, sente-se. Que pessoas como eu (nunca fui uma melómana - pudera, imperava a música indiana, o mundo dos sons quase se fechou :) - mas fui uma cinéfila no tempo em que o meu mano grande, actualmente com 57 anos, comprava a Première e eu dispunha de uns anitos de aprendizagem de FR e um parco dicionário quase de bolso, tudo lido religiosamente, so to say) vos admirem, mesmo não 'apanhando' - quase sempre - três dedos do que é oferecido, não espanta. Quem espanta, sois vós! :D

    Abraço para ambos.

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  2. Obrigado Alexandra pelas tuas palavra simpáticas. Desculpa a intermitência mas entre incêndios e calores impossíveis tenta-se fazer férias. Beijinhos!

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