sexta-feira, 2 de junho de 2017

Donald


Tinha todo o jeito do mundo para dizer as coisas que paravam o mundo. Punha a boca quase cerrada e, no entanto, as frases saíam como escarros directos à cara da multidão. Mas a multidão, essa, batia palmas, pois tinha molas nas falanges e receio sob os ombros, um xaile daqueles caríssimos, pesados, que abrigava do frio da solidão com a geada da obediência. Tinha todo o jeito do mundo para dizer as coisas justas de um ponto de vista injusto. Ou seria o oposto? Abria a injustiça a meio com uma faca e metia lá dentro pequenos pedaços de elogios, sobras de adjectivos, uma ou outra interjeição madurinha. Depois nem precisa de ir ao forno da reflexão, era tudo servido assim, frio, tal qual salada de cifrão, com pozinhos de impotente imponência. Era um projecto de Verão, ao ar livre, sem se saber muito bem por quanto mais tempo o livre, e por quanto mais tempo o ar. Seja como for tinha jeito para isso, para pôr o grão na engrenagem, para mostrar à brisa o efeito da pedra. Depois de tudo dito e olhado, olhou o relógio: tudo parado. Mas nem era a mecânica suíça, era a biologia universal que lhe dizia, suavemente, que o tempo haveria de rolar novamente. Seria uma questão de tempo, precisamente, até a engrenagem se desfazer do grão, e nesse momento, seria o mundo a apontar o necessário para parar as suas palavras. Um coração tornado granito, no seio de um ar restaurado, livre, sem frio. 

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