sábado, 24 de junho de 2017

Hymyilevä mies (2016) de Juho Kuosmanen

Numa entrevista de promoção do seu filme, o realizador Juho Kuomanen conta, orgulhoso, que a figura cautelar do cinema do seu país, Aki Kaurismäki, lhe teria dito que precisou de esperar 35 anos mas que finalmente tinha encontrado um colega no cinema finlandês. Um pouco menos, 30 anos, separam dois filmes dos “recém colegas” que importa relacionar. O primeiro, um pequenino e delicioso bombom, uma curta de 86, Rocky VI, no qual Kaurismäki parodiava a personagem de Stallone, lingrinhas de calções com a bandeira americana, lutando, sem qualquer tipo de hipótese, contra o bucha siberiano e sobrancelhudo, Igor [personagem essa inspirada no oponente russo de Rocky IV (1985)]. O segundo, este Hymyilevä mies (O Dia mais Feliz na Vida de Olli Mäki, 2016) que conta a história de um boxeur finlandês que, em 1962, teve a rara oportunidade de se sagrar campeão da modalidade em Helsínquia.

A filiação destes dois filmes, além de provir do tema desportivo e do humor – embora, no filme de Kuosmanen o humor seja bastante mais subtil, e nesse sentido, bem mais chegado aos filmes mais maduros de Kaurismäki –, busca-se na forma como procuram mais do que opor dois combatentes, opor dois mundos ou formas de viver. No caso da curta-metragem a sátira coloca em confronto  o mundo “livre” e mediatizado do grande herói americano (que chega de avião e têm se de desviar dos flashes dos jornalistas à chegada) e o enfarta brutos comunista que mais do que um selecto desportista é um homem que gosta de andar à porrada. Já na longa de Juho Kuosmanen as oposições são outras. Ou quase: porque o dito “mundo livre” de Rocky foi aquilo que se começava a formar nos anos 60 – recriados aqui através de uma certa nostalgia trazida pela película de 16mm e pelo preto e branco – uma versão mediatizada do desporto, cheio dos mesmos flashes de máquinas fotográficas, campanhas promocionais, conferências de imprensa, entrevistas ou eventos patrocinados por sponsors.
O argumento mostra aqui a primeira das oposições de O Dia mais Feliz na Vida de Olli Mäki, a de um Olli que não quer tornar-se holy aos olhos da sociedade, um pugilista que apenas quer competir e não ser o herói promotor dos sonhos de um país. É neste sentido que a primeira das lutas do seu protagonista não será aquela que o oporá a ele, Olli Mäki, ao seu oponente norte-americano, Davey Moore, mas sim a luta entre um padeiro de Kokkoli (nome popular pelo qual é conhecido antes de se tornar profissional) e o sociedade do espectáculo. A segunda das oposições do filme é aquela que procura responder à questão: o que bate mais forte, o amor ou os murros do adversário? É que paralelamente à preparação de Mäki, vemos através de momentos de dança, mergulhos ou passeios de bicicleta, a forma como este se apaixona por uma jovem finlandesa, a quem comprará uma aliança (episódio real que despertou pela primeira vez a atenção do realizador para a história de Olli Mäki) horas antes do combate final. E cada um dos mundos parece puxar para seu lado.
Se é certo que entre o ringue real e o os outros ringues (o da mediatização e o dos amores) a separação é clara (às vezes até demasiado), também é verdade que é por entre as frestas dessas oposições que sopra uma aragem mais desprendida. Uma aragem veiculada no filme muito pelo trabalho sobre o olhar (e talvez por isso seja tão adequado o nome do prémio que em Cannes venceu, un certain regard). O actor que faz de Mäki, Jarkko Lahti, é um homem que pouco fala, que frequentemente observa, que instaura nos planos um “certo olhar”, silencioso, só, de uma incredulidade ora desesperada, ora sorridente (tão cara ao cinema finlandês, de resto). Depois também a ambiguidade presente nos olhares veiculados pela câmara. Se esta, por um lado, não filma o interior da luta física (ela nunca entra no espaço do ringue real, filma-o de fora, do ponto de vista voyeur, nos espaços onde está o espectador, o jornalista, o empresário, a amante), por outro lado, ela desmultiplica-se em olhares múltiplos na luta simbólica e social: são as máquinas fotográficas, são as máquinas de filmar do documentário que sobre Mäki está a ser filmado. E é a câmara à mão, instável e constante, que tanto serve para colher os mais delicados momentos de observação de Maki – sobretudo nas cenas com o universo familiar, em particular as crianças –, como, sob o manto de uma pretensa proximidade e autenticidade, se dá os primeiros passos na chamada Reality TV, ensaiando murros ou forjando alturas e palavras.
Num dos momentos mais reveladores daquele que já foi apelidado como o “anti-Rocky”, Maki vai pela segunda vez a uma daquelas atracções de feira que consiste em acertar com bolas de trapos num dispositivo que fará cair à água um par de prize-women expostas antes a multidão excitada. Se da primeira vez o nosso herói tinha, como todos, apenas tido o seu momento de diversão, desta vez, ele olhará para lá do palco do espectáculo, podendo observar uma das jovens no backstage, encharcada, chorando e tirando a sua peruca depois de mais umas horas de trabalho. Ou melhor, de humilhação. Enquanto que no mundo de Rocky só a vitória no ringue levará à vitória no amor, no mundo de Olli Mäki só a derrota no ringue – o dia mais infeliz – parece indicar a vitória no amor – o dia mais feliz do título. E talvez esta inversão se comece a completar naquele preciso momento em que o protagonista percebe que para se ser um herói no sentido clássico, teria de ser um bobo da corte societária a quem todos “mandam à água”, a quem todos mandam tirar as cuecas para se medir o exacto peso.
É por isso que este filme de Juho Kuosmanen é uma espécie de Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942) que se recusa a subir de escalão, que culmina na apologia do herói na sombra, o herói familiar que escolheu (oferecendo flores ao seu oponente vitorioso, como quem o compensa pela derrota, apesar de ter sido o oposto), trocar as bolas de trapos por pedrinhas e atirá-las à agua juntamente com o amor da sua vida. Outra aragem que surge; é a nouvelle vague possível, no meio do subtil desencanto finlandês, no meios dos sessentas, no caminho de outros amores godardianos feitos a cores, relato de outras tantas fugas idílicas.

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