Não peço desculpa pela falta de originalidade. Na altura já tinha visto muitos filmes — achava que eram já muitos —, desde a iniciação familiar das projecções Super 8, filmes vistos, uma vez, outra vez, vezes sem conta, as vezes sem conta das crianças, que teimam em voltar obsessivamente às mesmas histórias. E que não me livraram do susto do primeiro filme no cinema, cheia de medo que o senhor que picava os bilhetes naquela matiné do Monumental me perguntasse quantos anos tinha e, à falta de uns meses, não me deixasse entrar (era o Disney de que conhecia de olhos fechados a parte do dragão a jorrar fogo do castelo, guardada num dos pacotinhos de papel amarelo Kodak). Já ia muito ao cinema, já via muitos filmes na televisão, andava pelo Cineclube de Viseu sempre que por lá estava, e pelas noites do Parque nos Verões das projecções ao ar livre, que foi como vi pela primeira vez os Pássaros (o Vertigo foi dentro de portas). Em suma, poupando nos caracteres e nas confidências, não era nenhuma principiante. Mas foi o Pierrot le Fou que me atirou para uma sala de cinema, de onde em certo sentido não voltei a sair.
Foi numa sessão do Quarteto, onde costumava passar algumas tardes. Passei também a tarde seguinte, com o mesmo filme. A voz do Belmondo a falar do Velázquez apanhou-me logo. Estava lá tudo o que gostava — os livros e as canções trauteadas, as viagens de carro que se fazem sem olhar para trás (salvo para piscar o olho ao espectador), a improbabilidade amorosa, o mar, as deixas por que não se espera, as letras a tomar conta da imagem, os trocadilhos, as elipses, as derivas, as sacudidelas, a tragédia sentimental-policial-poética-surreal, a azul e vermelho, com algum amarelo e algum verde, que são logo as cores dos clarões que varrem a noite da fuga de Pierrot — ele diz que se chama Ferdinand — e Marianne, Renoir. Colorido como é, o filme segue-os quase sempre luminosos. Da primeira vez que o vi pareceu-me que só por um instante, diurno, ficam à sombra, quando passam de barco por baixo de uma ponte, terminado que está o idílio mediterrânico. Nunca consigo confirmar se é mesmo o único momento, porque o filme leva sempre a melhor e vejo-o sempre assim. São as emoções, já se sabe, está no Pierrot le Fou, que deve ser o filme que mais dá vontade de viver. “Après tout.”
Maria João Madeira *
*A Maria João, entre variadíssimas colaborações com festivais e outras instituições ligadas aos cinema, é programadora na Cinemateca Portuguesa- Museu do Cinema.
Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
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