Há quem diga que fora dos loucos e progressivamente menos loucos anos 30, Gregory La Cava pouco ou nada teve a dizer. Até lá, sobretudo curtas e os anos de aprendizagem (a técnica, os gags, a técnica dos gags, trabalhando com W.C. Fields, no limite do que com ele era possível trabalhar). Depois deles, com o código Hays em grande força, os estúdios passaram a assumir progressivamente menos as suas loucuras. Mesmo My Man Godfrey (Doidos Milionários, 1936) e Stage Door (A Porta das Estrelas, 1937), as suas obras-primas, já são de certa forma pedaços de despedida da sua ousadia, ousadia essa que no período apelidado de Pre-Code (entre 1930 e 1934) conheceu seu máximo vigor.
É a estes anos que pertence Bed of Roses (1933), comédia romântica de prostitutas e álcool, de amor versus camas pejadas de rosas. Prostitutas assim dito parece muito forte, escrevo antes duas mulheres saídas da prisão e que procuram um futuro. Futuro esse que passará pela manipulação dos homens. Como? Através das armas de domesticação da bebida e do sexo.
A primeira frase que se ouve no filme sai da boca de Constance Bennett: “I dont know what the world would do without art”. O que vemos na sua mão é uma série de fotografias de mulheres acachapadas ao colo de soldados, marinheiros musculados ou fantasias com comerciantes abastados. A companheira de cela, pois é na prisão que ainda está, pergunta-lhe de que arte fala ela e esta responde-lhe que é qualquer arte. Mas depois acrescenta, “likes these pictures”. As pictures serão por elas rasgadas – pois é tempo de pragmatismo – mas a picture, essa arte sem a qual não se consegue viver, é também o filme, Bed of Roses. Lorrie, assim se chama a personagem, despede-se da companheira de cela e no momento seguinte a directora da prisão prepara a sua libertação e de algumas outras reclusas, entregando-lhe os seus bens. Aqui conhecemos a companheira de liberdade de Lorrie, Minnie Brown (Pert Kelton), wisecracker ao estilo de Mae West.
A genialidade de Gregory La Cava torna-se agora ainda mais evidente: Lorrie sobe ao barco daquele por quem se apaixonará, homem simples, e ironicamente cai-lhe da cinta de ligas o maço do dinheiro ainda há pouco roubado. E fica assim a pairar uma escolha que depois se tornará clara: amor ou dinheiro, cama de rosas ou “mar de rosas”. A tradução portuguesa da expressão “bed of roses” é particularmente feliz. Pois se nem tudo será para as duas mulheres saídas da prisão um “mar de rosas”, as rosas do amor para Lorrie não virão da cama (na imagem vemos o momento em que ela acorda na sonhada cama de rosas, em casa de um famoso editor que seduz, como opção monetária para o seu futuro; John Halliday num registo de finíssimo humor) mas sim desse mar, casa volante de Dan.Ao libertá-las, a directora diz que Minnie é a impulsiva e Lorrie a incorrigível. Tratar-se-á pois de assistir em seguida a uma pequena viagem entre barcos e quartos, na qual Minnie ganhará pulso (literalmente, basta ver a ironia de brilhantes que lhe repousa no braço quando na última frase do filme diz: “I like to see true love triumphant”) e Lorrie se corrigirá. Logo à saída, um padre amigo tenta em vão fazer essa sua correcção mas ela recusa: não vê “futuro em mudar fraldas” (pelo menos as dos outros), num trabalho como governanta. Seguem as duas para Nova Orleães num grande barco e numa sequência por entre nevoeiros marotos (a fotografia de Ted Tetzlaff), buzinas de barcos e o furto de sessenta dólares de um homem que beberá demais, Lorrie salta borda fora para não ir parar novamente à prisão. É um pequeno barco de comércio de algodão que a recolhe, pertencente a Dan, um jovem Joel McRea, em início de carreira.
No resto pode dizer-se que Bed of Roses, como filme curtíssimo que é (67 minutos) é um tanto abrupto nas suas elipses (mais parecem rasgos), algo um tanto compensado pela velocidade dos brilhantes e irónicos diálogos. Se Lorrie e Dan se vão mandar um ou outro borda fora (literal e simbolicamente) até que assumam o presente com todo o passado incluído, La Cava filma ainda uma tocante e muito subtil amizade feminina. Vão lá ver aquele momento de tristeza tão mas tão postiço em que Minnie lamenta a “morte” da amiga por se ter mandado ao mar. Só Minnie sabe, é a única habitante do barco que (sabemos nós) sabe que a amiga não morreu. Porquê? Não me perguntem, mas a direcção de actores dá-nos essa certeza. Ou muito mais à frente, quando Minnie recebe dinheiro do editor para tentar reuni-lo novamente com a amiga durante uma festa de Carnaval e aí intuímos que ela sabe que a amiga continua a não querer saber dele pois que já “quit thinking of dollar signs”. É por isso que ela sai de perto do marido para ir procurar “um pirata”. Que pirata? Dan. Pois que ela já não ama o rico que surge no Carnaval disfarçado de Napoleão e prefere o pobre pirata. Mas como soube ela dessa mudança? Que certeza é essa tão grande que a amiga tem dos sentimentos da sua “companheira de liberdade”? Mais uma vez não me perguntem.
É talvez uma certeza ditada pela amizade, num filme que é todo sobre aprender com os engenhos da prisão (real e societal), pois só eles ensinam a uma vida de liberdade.
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