sexta-feira, 23 de junho de 2017

O bícep musculado e a banha da crítica de cinema


A influência económica no seio da crítica de cinema faz-se sentir no músculo do substantivo e na banha do adjectivo. 

Com o primeiro procura-se contar um tenro naco da história, para as pessoas poderem ir ver o filme, criando-se assim uma estupidez, que se perpetua como capim em mato grosso: a ideia de que o cinema "serve para contar histórias", que é esse o seu bícep tonificado e o resto demasiado complicado para quem quer manter a sua "mente saudável". O ginásio do entretenimento não permite exercícios que não se quantifiquem ou expliquem de forma imediata pelo seu crítico-instrutor. 

Com o segundo pretende-se que o texto venha servido com o máximo de gordurosos e genéricos adjectivos - como por exemplo, "notável", "refrescante", "perturbador", "maravilhoso" - que funcionam como docinhos que o leitor vê na montra daquela pequena pseudo-publicidade polvilhada de contados (e por isso, muito calóricos) caracteres. Com todos aqueles coloridos adjectivos como não sair para enfardar mais um fast film?

Toda esta prosa banhuda pouco ou nada tem a ver com a crítica. Esta nasce da fricção, não do consenso entre a fome e a vontade de comer m*. Não serve para atrair, nem para nada, nem ninguém. A crítica de cinema nasce do confronto entre a organização de imagens e sons produzidos no seio de uma actividade criativa (coordenados pelo realizador e outros membros da equipa de trabalho) e outra organização - a de  imagens mentais, percepções, memórias, sensibilidade, razão - pertencentes ao espectador-crítico. O confronto destas duas organizações leva a que esta última, pessoal, se reordene. Quando isso acontece o texto ou o ensaio críticos são a expressão dessa nova organização que se produziu pelo confronto, pela fricção, entre o filme e o seu espectador. Quando termina a obra de arte filme, começa a obra de arte crítica, uma expressão de algo novo, subjectivo, que processe esse choque. 

O bom texto crítico é pois aquele que não tem como não chamar as pessoas para o filme (e por isso são tão redundantes e inexpressivos os ditos adjectivos). E fá-lo pois afinal de contas as suas imagens são a obra prima com que o crítico trabalha. Da mesma forma o bom texto chama simultaneamente a atenção para aquele que o escreve (ou produz), em particular, espicaça a nossa curiosidade para aceder ao seu "filme mental", ao seu estilo, ao modo como aquela pessoa expressa e exterioriza o seu encontro com as imagens e os sons. Como se além do filme, tivéssemos vontade também de ver o filme "realizado" por aquele crítico, por aquele olhar. 

Por tudo isto, quando a economia entra no campo da crítica de cinema apenas se produz a padronização, seja ela alinhada pelo facto atlético ou pelo elogio obeso. Entre essas duas formas de ser a-críticos, estão os filmes, únicos, irrepetíveis, assim como os olhares que estes exigem.

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