Num dos poucos contos que ainda me faltava ler de Dostoiévski, "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877) um jovem quer dar um tiro em si próprio. Matar-se. Não sente nada, tudo lhe indiferente. Até a menina rota e suja da rua que vem pedir ajuda lhe merece desprezo. Olha para o lado e segue. Na noite em que ia acabar com a sua própria vida tem um sonho: imagina-se morto no caixão e é levado por um ser para outro lugar - um paraíso na terra - onde tudo é perfeito. A comunhão entre o homem e a natureza, os bons sentimentos, a comunidade perfeita onde todos são um (como sonharia Sloterdijk, uma "teoria geral da paz" tornada concreta). Sendo o nosso herói o homem convicto de que a vida não vale a pena ele acaba por funcionar, segundo a mente perversa do escritor russo, como o grão na engrenagem. A sua passagem poluída pelo paraíso daqueles seres humanos tornados perfeitos corrompe-os. E eis que logo a propriedade e a ambição os divide, a língua serve a sua desunião, maltratam-se os animais, surge o mal estar, a guerra, a fome e todos os outros males seguintes (estes imagino-os eu, pois que não os descreve assim o autor). Mas o mais genial desta breve narrativa é a importância da mudança de posição a partir do qual se vê e se fala para que qualquer mudança venha a ocorrer. Para que o nosso herói não se queira mais matar, para que se apegue à vida, essa humidade entranhada no solo depois de desabarem as chuvas, é preciso que ele passe a não ser o mais pessimista do grupo. Agora, no sonho, ele vê-se na qualidade do optimista: tem de tentar convencer aquelas pessoas, outrora perfeitas, que ele foi a razão do seu pecado original e que têm de tentar regressar ao ponto em que se encontravam antes dele chegar. Estas são incrédulas, não se lembram do momento anterior, tempo no qual tudo era felicidade, bonança e perfeição. Como o narrador se vê finalmente na posição do menos negativo do grupo, tentando pregar a vida e as delícias de estar vivo, a frescura da água ou o calor do sol, ele torna-se naquele que quer viver.
Pequeno pedaço de literatura que nos mostra como funciona, de maneira intestina, a terapêutica do pessimismo. Dostoiévski pôs-se a jeito para viver vasculhando nessas profundezas. A magia "uplifting" do pessimismo russo ainda hoje dá frutos. Suicídio é uma flor que ainda não percebeu a utilidade que possui: tornar vastos os jardins, corromper a ferrugem dos anos, dar-se a conhecer numa manhã de chuva, minuto de um século de eternidade.