Quem por estes dias visitar a toca [do Lobo] pode por lá encontrar três tesouros:
1. O arquivo emocional
Talvez o mais justo que se possa dizer sobre a última longa-metragem documental da realizadora é que se trata de um filme sobre uma neta que precisa de saber mais sobre o seu avô. Avô que nunca conheceu mas que, como um sonho recorrente, lhe apareceu desde pequena e do qual sempre ouviu falar. Ele gostava do nome Catarina… Ele era escritor mas ela não leu ainda todos os seus livros… Ele tem várias ruas, sempre traseiras e marginais, com o seu nome… Mas quem era afinal aquele invulgar homem ao qual uns chamavam bizarro, outros visionário? Aquele homem que viu a sua lucidez presa num manicómio para não ser preso de facto? Quem era o escritor e o homem que morria de saudade pela filha (mãe de Catarina), mas que esta lamenta a distância e frieza? Como era a sua casa, entretanto vertida em museu, espaço agora inacessível à realizadora e “aprisionado” por uma tia que não fala com a irmã há trinta anos?
As fotografias dos álbuns de família, que ora mentem ora confirmam sentimentos e estados de alma, os preciosos vídeos caseiros e uma entrevista dada por Tomás de Figueiredo à RTP nos anos 60 são as pistas de arquivo que Catarina Mourão tem para responder a estas questões. Desta forma, a dimensão pessoal e autobiográfica de A Toca do Lobo é-nos filtrada através de um whodunnit que em rigor é antes um whowasit. Catarina procura na toca do lobo. Como ferramenta um arquivo que serve uma investigação emocional e nos convoca os sentimentos de ternura familiar, ao mesmo tempo que nos aguça o mistério e nos traça o ambiente de uma vida sob a égide da ditadura portuguesa.
2. O arquivo performativo
Contudo, não só Catarina nunca conheceu Tomás, como ninguém parece tê-lo feito. Esposa, filha, vizinhas, ninguém nunca percebeu o notário que escrevia e muito mais podia ter escrito, o homem que se levantava tarde e fumava e escrevia sonetos e coleccionava saquinhas de cachimbos à espera das netas que haviam de vir um dia. Por tudo isto, talvez se possa dizer que A Toca do Lobo não usa o arquivo em busca de um retrato, de uma resposta para o mistério. A dada altura o espectador percebe que esse mistério,o “mistério” da criação artística (do avô e da neta) não se resolve, não é “crime” que se deslinde. Assim, resta pegar nesse material do passado para construir, performativamente, uma visão do presente que o receba; transformar uma falta numa presença possível. A resolução do mistério da arte só podia ser a arte, neste caso, um filme. E neste cintila o que de mais precioso um filme pode ter: um mistério intacto e irresolúvel.
3. O arquivo aberto
Na já referida entrevista de Tomás de Figueiredo há duas pérolas que são parte deste tesouro. O primeiro é a forma como o escritor fala dos meios imperfeitos da televisão por comparação às imagens mentais, a forma como aquela, a preto e branco, não pode revelar por exemplo as cores e as texturas das saquinhas de cachimbo que coleccionava. O segundo quando Tomás confessa que espera que um dia as suas netas usem as suas saquinhas para lá colocarem conchas da praia, ou outras brincadeiras, em vez dos ratos as comerem, como triste desfecho do passar do tempo. Quando Catarina usa estas imagens ela sabe que o arquivo que as mostra, aberto, comunicou consigo, com o presente. Que aquelas imagens não só lhe “deram o nome” que hoje tem, como a vontade de “brincar” com esses objectos que faziam parte da colecção de memórias do seu avó. Podemos dizer hoje que o cinema também é (ou continua a ser) imperfeito por relação às ditas imagens mentais. Contudo, já revela as cores e as texturas das ditas saquinhas. Esse acto de revelação que, mais do que tudo, nos revela enquanto espectadores, é, diga-se, o grande tributo que Catarina Mourão prestou a um sonho que não conheceu, o seu avô. Mas quem pode afinal conhecer um sonho?
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