Pouco após a estreia de 8½ (Oito e Meio, 1963) o que de mais
comum se podia ouvir sobre o filme era que o divertimento autobiográfico
de Fellini era brilhante à superfície mas no fundo desprovido de
conteúdo significativo. Se essa mesma originalíssima ideia já
vem perseguindo o Tarantino “fabricante de catálogos derivativos de
citações” desde o início da carreira, agora que chegamos ao seu oitavo
filme (sem meio), essas mesmas vozes voltam a tornar-se mais evidentes. E
aparentemente a relação entre os dois filmes não termina aqui. É que se
conta que na origem de 8½ esteve um esquecimento da ideia
original para o filme por parte de Fellini, que depois derivou na
história que conhecemos, de um realizador em bloqueio criativo. Não se
pode propriamente falar em bloqueio de Tarantino em relação a The Hateful Eight (Os
Oito Odiados, 2015) mas sabe-se como esteve prestes a desistir do
projecto quando o argumento que escreveu se publicou na internet antes
da rodagem. Assim como o mesmo viria a acontecer com o próprio filme,
mesmo antes de se poder ver em ecrã grande o resultado dos gloriosos e
coloridos 70mm que Tarantino escolheu para o formato do filme. Seria
aliás interessante confrontar esse choque entre um filme que vive sob o
signo do fechamento (das suas personagens numa pousada, abrigados do
frio e de uma monumental borrasca lá fora) e essa “abertura” congénita a
que esteve condenado desde as suas fases muito muito iniciais.
Depois de matar nazis em Inglourious Basterds (Sacanas sem Lei, 2009) e de colocar os negros a rectificar a história da escravatura americana em Django Unchained (Django Libertado, 2012),
Tarantino resolve avançar uns anos até à ressaca da guerra civil
norte-americana e jogar um xadrez sanguíneo a oito peças com os despojos
humanos do conflito. Nas montanhas do estado do Wyoming, o bounty hunter
John Ruth (Kurt Russell) leva de carruagem uma fugitiva, Daisy Domergue
(Jennifer Jason Leight) até à cidade de Red Rock para lá ser enforcada e
receber a devida recompensa. Na eminência de uma forte tempestade de
neve resolve dar boleia a outro “colega” de profissão, o Major Marquis
Warren (Samuel L. Jackson), ex-combatente pelo exército do norte, e a
Chris Mannix (Walton Goggins), suposto novo xerife de Red Rock, pró Sul e
homem pertencente às milícias da lost cause.
Estes quatro vão encontrar outros quatro quando pernoitam na estalagem
de Minnie. Entre estes está o habitual Michael Madsen como Joe Gage (o
cowboy que vai ter com a mãe pelo Natal), o carrasco de Red Rock (Tim
Roth), o mexicano Bob (Demian Bichir) e Sanford Smithers (Bruce Dern),
um ex-general que lutou com o exército da Confederação.
Estas duas equipas jogarão esse tal xadrez, que no cinema de
Tarantino não é um jogo assim tão parado, mais perto da reencenação indoors da célebre batalha de Baton Rouge
que opôs Norte e Sul. Claro que as equipas e as regras nunca são muito
rígidas, ou não tivessem todos as suas razões e não fossem todos hateful. Para arrumar de vez com as preocupações de encontrar seriedade em The Hateful Eight diga-se
então que, entre o Cristo crucificado do início e o demónio que dança
do fim, há essa preocupação de traçar tangentes entre o santo e o
demónio, os bons e os maus, no whodunnit onde todos, mais ou menos, did it. E
ainda no capítulo do revisionismo histórico, o poder redentor da
ficção, que já vinha dos dois filmes anteriores, não deixa de ter eco na
saída de sobrevivência para toda uma eminente matança. Uma saída que
mais do que pôr a hipótese (para logo depois a falsificar, deixando os
seus ecos a pairar) de Marquis Warren ser mesmo pen pal de
Abraham Lincoln (incrível como Tarantino brinca com Spielberg no final
do filme) esclarece esta possível união norte-sul, negro-branco, para
escapar às tentações do “demónio” que pelo caminho vai perdendo os
dentes e adquirindo tonalidades vermelhas…
Embora estas camadas possam acrescentar algo aos filmes de Tarantino
há depois que ter em conta aquela frase reveladora do carrasco quase na
hora de filme quando diz que dispassion is the very essence of justice. Se no filme se quer falar num processo civilizacional que implica a administração impessoal da justiça contra as angry mobs,
não há como não pensar no crítico como aquele carrasco que procura
incessantemente uma justiça, uma seriedade no acto de dissecar os filmes
de Tarantino. Pois bem, não há muita justiça a encontrar em felatios
na neve, vómitos ao metro ou cabeças que explodem. Mas há justiça em
determinar a violência gráfica (aliás nunca a violência foi tão inócua e
caricatural como aqui, mostrando que esta não se mede pelos litros de
sangue e vísceras), a misoginia ou o racismo das n words, como
assuntos determinados pelo contexto, pela comédia que rejeita a
fronteira entre os assuntos sacros e os temas permitidos. E justiça
maior há também em ver como séria a reterritorialização dos géneros:
aqui o western encontra o whodunnit e o filme de
terror, com Jennifer Jason Leigh entre o burlesco e a vítima do terror
mais sanguinolento, como uma menina saída de Carrie (1976) ou The Exorcist (O Exorcista, 1973).
Das inúmeras filiações ressaltam à vista duas. A primeira, interna,
que por virtude da compressão do espaço e dos jogos teatrais da
infiltração e detecção do culpado, liga a oitava obra à primeira, Reservoir Dogs
(Cães Danados, 1992). Nessa relação com o espaço — o sul e o norte mas
também o lá fora, frio e branco, e o cá dentro, quente e vermelho — The Hateful Eight escolhe
o primeiro mas não como elogio do teatro. Se a profundidade de campo
desmistifica essa hipotética relação, há qualquer coisa de depuração
nesta escolha do interior como o espaço acolhedor onde se contam as
histórias, um verdadeiro centro do cinema de Tarantino. O seu pólo de
atracção sempre foram, de facto, as histórias contadas pelas
personagens, em tom sarcástico e saboreando lentamente cada palavra.
“You’re starting to see pictures, aren’t you?”, pergunta Marquis,
olhando para a câmara, a meio de mais uma história rocambolesca. Sim,
estamos. E essas imagens internas são o resultado da escrita de
Tarantino, dividida em capítulos, ministrada de forma precisa sob o
confortável calor da lareira (ou da sala de cinema), entre golinhos de cognac e tiros em slow motion.
A outra filiação clara é à estrutura de The Thing (Veio do Outro Mundo, 1982) o “remake” que John Carpenter fez de The Thing from Another World
(A Ameaça, 1951) de Howard Hawks. Não só ambas as histórias são sobre
uma série de homens fechados num espaço com neve lá fora a adensar a
paranóia, tentando detectar quais deles são os inimigos (ou numa versão
mais literal, quem são os monstros, sendo que, como se vê, em Tarantino,
todos são inglorious basterds), como partilham o mesmo actor (Kurt Russel). E até algumas das músicas não usadas por Ennio Morricone para a banda sonora do primeiro fazem agora parte do ambiente acústico, algures entre o terror e o western spaguetti, que o italiano compôs para o filme.
Entre as tradicionais escolhas do Dj Tarantino, que ajudam a completar a
banda sonora, há uma peculiar. Numa sequência em que Joe Gage vem cá
fora procurar uma pessoa, pode ouvir-se os acordes suaves de “Now You’re
Alone” de David Hess, actor e compositor da banda sonora de Last House on The Left
(A Última Casa à Esquerda, 1972), o primeiro filme de Wes Craven. Esta
escolha inusitada não só assume claramente a inspiração do terror de The Hateful Eight,
como deixa a pensar se o nono e penúltimo filme de Tarantino entrará
por esse terreno. Aí, seria curioso pensar na opção que fará entre o
terror sério ou a paródia. Isto porque a grande seriedade de Tarantino é
a de não se levar muito a sério.
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