Ontem o À pala de Walsh juntou-se ao colectivo de arte White Noise na inauguração de um espaço na Guilherme Cossoul para futuras actividades culturais. Começámos por nos juntar à exibição de um filme, com a já habitual rubrica Filme Falado, mas desta vez ao vivo e com público. Nessa conversa que integrava o convidado Vasco T. Menezes muito se falou sobre Una Lucertola con la Pelle di Donna de Lucio Fulci. Ou no título em brasileiro Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (desculpem mas não podia passar a oportunidade de escrever a palavra lagartixa... duas vezes).
E de tudo o que se disse ninguém pegou no borrão do início, genérico de um louco genial, nem Pollock nem Malevich o sonhariam. Uma amálgama vermelha, disforme, muito vermelha, a chocar com as letras amarelas do título. O ácido será. Ele pode dar origem a todas as visões: o sonho ou a realidade, a morena ou a loura, a vítima ou a assassina. E claro, a lucertola ou a donna. Mais do que acertar no que pode ser o borrão, este filme de Fulci é em desvario e, em potência, todas as formas. Tudo o que há de vir pouco sentido fará, mas virá. Engraçadinho que isso se tenha depois convertido na bula interpretativa dos sonhos da psicanálise.
Mas há que ir mais longe. Então e o vermelho? Lá mais para a frente no filme, Mrs. Hammond, a protagonista, é perseguida por um maníaco num hospital psiquiátrico onde está internada. Ao fugir dele entra numa série de corredores todos brancos, portas fechadas. Então Fulci faz esta coisa estranhíssima: filma a mulher de perfil e nada de pormenores ao longe. Ele vem atrás dela, isso nós sabemos. Subitamente vemos uma pequena mancha... vermelha claro... que se torna evidente ao longe. Por um momento pensamos que é o seu assassino que subiu a se prepara para a alcançar. Mas esse borrão é trazido para a visibilidade e vemos que se trata de um extintor. A sério, um extintor? Porquê? Nem vale a pena perder tempo, pois logo a seguir há a dita cena dos cães esventrados ligados a uns tubos numa sala com instrumentos médicos. Cenário esse que, como se sabe, é o mais corriqueiro nos hospitais psiquiátricos...
Mas ainda o borrão. Dele devêm todas as possíveis formas com a câmara frenética de Fulci a querer experimentar tudo, a querer esventrar qualquer vislumbre de convenção. Alguém sob o efeito de ácidos poderia pensar que uma mulher é um lagarto... Quem sonha pode pensar que viu de facto... Num filme tão hitchcokiano — comece-se com Vertigo pela relação feminina no duplo, Spellbound pela questão psicanalítica e Stage Fright pelo paralelismo entre o flashback que mente e aqui os sonhos mentirosos — ainda podemos pensar noutra impensada relação. É que Lucertola começa como se Carol fosse a Iris de The Lady Vanishes. Ambas num comboio, ambas a não saber se o que viram aconteceu de facto. Ou sonho ou conspiração, no caso do paralelo entre os filmes é a mesma resposta para ambos. E nessa passagem entre o filme de 38 e o de 71 há um mesmo corredor de comboio. Corredor que para Fulci é o oposto dos ameaçadores espaços abertos: é antes um portal em que uma angústia pode devir num orgasmo. Sempre sempre estamos em processo do "tornar-se", do borrão vermelho a mutar em esquemas recônditos para ocultar (para não deixar ver) o resultado do prazer. O único prazer possível para Mrs. Hammond só pode estar atrelado a uma cama, o leito conjugal, apertado entre prisioneiras barras de ferro. E do marido, nem vê-lo.
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