segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

De noite

Até hoje já por duas vezes tive de passar a noite num hospital. A primeira há mais de 10 anos, a segunda há pouco mais de uma semana. Lembro-me de muito pouco da primeira vez. Não me recordo da cor dos lençois, nem da voz dos enfermeiros. A minha curiosidade, fluorescente, invadia tudo. Sei que havia uma pessoa com a qual partilhava o internamento mas não sei quem era ou do que padecia. Era novo demais para pensar na morte ou em como aquele quarto podia servir para nos separar do mundo. Lembro-me da minha família a rodear-me descontraída — o meu problema estava longe de ser grave — e de estar sobretudo focado na fome e no frio. Não comi nada durante 24 horas. Estava nu, em todos os sentidos. Nada sem ser a bata da operação e depois o frio do recobro. Ainda me lembro da protecção da cintura para baixo que me puseram para que não pudesse ver como me cortavam. Estava consciente e conseguia ver a máquina das batidas cardíacas. Observava o meu rosto no reflexo das lâmpadas da sala e entretanto devo ter adormecido. Só senti medo uma vez: quando me empurraram suavemente o corpo da maca para o elevador que descia à sala de operações. Um medo estranho, futurista, de quem entra numa nave espacial e que se prepara para voar para um mundo qualquer. A noite passei-a bem pois tinha muito sono. Um sono sem sonhos, como se fosse mais para despistar a fome do que a dor. Essa nunca a senti, nem depois. Era jovem demais e só olhava para dentro. Dessa vez o hospital foi sobretudo para mim como um hotel exótico, no qual chegamos depois de caminhar um dia inteiro, tapete de boas vindas, calor, experiência única.

Entretanto o tempo passou. Ou escoou, não sei bem. Mais de uma década depois voltei ao hospital. Outra vez o mesmo problema, longe de ser grave. Outra vez uma noite. Mas não era a mesma noite. Já não senti a fome e o frio. Os lençois eram brancos, tão quentes, a bata azul, tão fina. Ao meu lado um senhor a ouvir notícias do benfica, tão forte e descontraido. E eu tão fraco e só, apesar do apoio familiar. Na cama a seguir a essa um senhor dos seus setenta e cinco anos que se esforçava por manter o sorriso. Tinha um andarilho para ir à casa de banho durante a noite. Ouvia-se muito o metal. Contava anedotas de Co-lombo e o barulho da serra eléctrica a perfurar-lhe o joelho. Talvez fosse velho demais para a operação, mas de olhos alegres e vivos o suficiente para não lha terem recusado. Ainda um quarto companheiro de enfermaria, um senhor também já de certa idade, com problemas na próstata, urina com coágulos. Ouvia tudo isto sem querer e essa era a única dor que podia sentir. Doía-me a dor deles, mas permanecia calado. Os enfermeiros ora se riam oram eram autoritários. Uma amostra da vida num espaço à parte da vida plena. A noite, esta, foi interminável. O sono interrompeu-se inúmeras vezes. Não eram os sonhos, era o desamparo. Sentia-me tão só e injustiçado por estar a provar com a antecedência de anos e anos um gostinho da vida quando se vai. Acordava a pensar que ali não era o meu quarto, que aquelas já não eram as minhas pernas, que não podia sentir vontade de mijar. Mijar sentado aos 35 anos anos soa a impossibilidade. E por isso esperava pela manhã, doce, para que me viessem as minhas pernas, aquelas que me podiam acompanhar à casa de banho como gente saudável. Deram-me de comer mas não comi, estava demasiado triste, ignorava os roncos do estômago.

Desta vez lembro-de tudo. Da anestesista me dizer, ao entrar na sala de operações, "não o quero ver com essa cara". De me perguntarem se ainda sabia o nome, segundos antes de um gelo me invadir metade do corpo e adormecer logo de seguida. Recordo-me do barulho dos pensos a saírem da carne e da urina com cheiro a soro. Também não vou esquecer de como o cirurgião se enganou no meu nome ou dos planos subjectivos do caixão de Vampyr, quando olhava o tecto ao ser carregado pelo corredor em cima de uma maca. No dia seguinte quando recebi a notícia da alta vesti-me como pude, desejei as melhores aos meus companheiros de desalento, e saí, a coxear muito, do quarto. Preferir esperar já fora da enfermaria, meio deitado, junto à máquina do café, que me viessem buscar. Pegaram em mim, um taxista ucraniano levou-me a casa e, quando cheguei, parecia que tinha esquecido tudo. Não me lembrava das feridas nem das pessoas, da dor nem da noite. Tudo aqueceu subitamente. Senti fome. Momentos depois, ver televisão e falar com as pessoas que amo pareceram-me as dádivas mais maravilhosas do planeta. Mas nessa noite não dormi.

6 comentários:

  1. Conheço bem essas sensações: a vulnerabilidade, o estarmos à mercê. Quando fui operada aos joelhos, ao acordar, não sabia sequer onde tinha as pernas. Queria mexê-las mas não as sentia nem sabia onde procurá-las. E lembro-me de, quando ia para o bloco, ir numa maca no corredor, levada, talvez observada e estar ali dependente de tudo, da sorte.

    Não é bom. Mas passa. no entanto, ficamos a saber como é quando não estamos na plena posse das nossas faculdades.

    E, com isto, quero deixar-lhe os votos de rápidas melhoras, sem complicações, e que rapidamente volte ao seu normal.

    Um abraço.

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  2. Sim estas experiências são importantes. Fazem parte da vida, para a compreendermos também a sua dimensão de perda. Obrigado pelas palavras simpáticas.

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  3. Nunca pensei que pudesse voltar a estar tão próximo da experiência de estar num hospital, com todas os sentimentos, medos, ansiedades associados. Já foi há muito tempo, mas este texto fê-lo parecer como se fosse ontem. Tinha muito para dizer, mas pouco tempo. Texto belo que mexeu muito comigo, foi como se voltasse a um tempo-espaço único, conservado algures na minha memória. Um abraço

    Um abraço

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  4. Obrigado Francisco, um abraço deste espaço-tempo único que é a blogosfera. :)

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  5. A primeira vez que vi uma pessoa morrer (já tinha visto uma pessoa morta e uma pessoa a morrer, mas nunca tinha estado presente no momento em que a vida abandona o corpo de alguém) foi num local assim. Tinha 11 anos e estava hospitalizado devido a um traumatismo renal provocado por um acidente. Um Domingo, com a enfermaria cheia de gente (era dia de visitas), o Sr. Silvino, um velhote simpático que passava os dias a urinar coágulos de sangue (tinha cancro na próstata), morreu à minha frente. Esqueci os detalhes de coisas mais recentes e com um impacto muito maior na minha vida, mas nunca mais esqueci os detalhes da morte do Sr. Silvino: ele a vomitar sangue; as filhas dele aos berros; os enfermeiros a correr como baratas tontas, sem saber o que fazer; e a minha mãe entre mim e aquela morte, abraçando-me e dizendo-me que estava tudo bem.

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  6. Com 11 anos ainda toda a gente me montava uma redoma para não ver mortos nenhuns. Acredito que com esta idade seja difícil esquecer uma morte assim à frente dos olhos. Eu tenho 35 e nunca vi ninguém morrer...

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