Em 1945, o britânico David Lean realizou Brief Encounter (Breve Encontro, 1945) sobre um affair
vivido por um casal, homem e mulheres casados, no final dos seus
trintas, entalado numa vida de pseudo felicidade. Quem o viu sabe que
esse momento de amor era um comboio súbito que apenas passa uma vez na
estação (curioso que no filme de Haynes os comboios, sendo o símbolo
masculino por oposição às bonecas, são também esse sinal de viagem
idílica). Mas quem o viu, sobretudo não esquecerá a mão que Trevor Howard coloca no ombro da sua amada Celia Johnson
em jeito de despedida — “I felt the touch of his hand on my shoulder
and then he walked away” —, impedidos que estavam de se despedirem
propriamente. Esta mão, este gesto do adeus possível é como começa Carol (2015), o último filme de Todd Haynes.
Se há aqui uma ressonância ela é demasiado forte para se explicar
numa mera curiosidade cinéfila. Seguramente que se pode começar por
aqui, pela dimensão neoclássica do cinema do norte-americano que, à
parte os seus filmes “musicais” [Velvet Goldmine (1998) e o mais recente I’m Not There
(Não Estou Aí, 2007)], se foi aproximando do trabalho arquetípico sobre
o dilema da mulher desamparada, embatendo no muro das convenções
sociais. É certo que Safe (Seguro, 1995) ainda é um
filme independente (na forma e no conteúdo) mas há nele o iniciar de um
caminho que vem inquirindo as mulheres americanas bem vividas e melhor
casadas. Acerca das suas perturbações psíquico químicas, questões
raciais e de adultério [o melhor dos seus filmes, Far From Heaven (Longe do Paraíso, 2002), inspiração tirada de All That Heaven Allows
(Tudo o que o Céu Permite, 1955) de Douglas Sirk] e agora o problema de
uma mulher poder amar outra em plenos anos 50 de uma América pós
Guerra, a braços com uma perseguição homossexual (o dito “lavender
scare” por relação com o “red scare” comunista).
Carol é a adaptação de um romance de Patricia Highsmith intitulado The Price of Salt,
escrito em 52 sob o pseudónimo de Claire Morgan. E nele a escritora
assume uma relação com uma mulher mais velha, casada. É aqui o papel de
Cate Blanchett que seduz uma jovem (Therese Belivet, interpretada por
Rooney Mara) que encontra numa loja, durante o Natal, envergando um belo
chapéu alusivo à época. O filme de Haynes centra-se narrativamente no
encontro, desencontro e reencontro do casal, tendo como fundo um
processo de divórcio de Carol e a luta pela custódia da sua filha. Se ao
casal se juntar, a ex-amante de Carol, a agora confidente Abby (Sarah
Paulson), percebemos que o trio feminino deste filme (ao qual poderíamos
juntar a figura da própria escritora da história) é não só o seu
centro, como se escuda de um conjunto de homens não muito inteligentes,
largueirões na fisionomia e no pensamento.
A história é simples e simples a mantém Haynes. Perante isto há que
interpretar qual o sentido do gesto dessa simplicidade. Os mais
apressados dirão: Carol é uma história de amor ponto,
nem procura sequer filmar uma especialidade qualquer no retrato daquele
amor homossexual. Carol e Therese são dois seres humanos que se desejam e
nem sequer falam do mundo que as rodeia, é a aproximação que as define.
Esse argumento procuraria trazer a realidade retratada para a norma
(esforço que aplaudiríamos caso correspondesse ao filmado). Do outro
lado, igualmente apressado, vê-se em Carol a entrada
subtil na corrida oscarizável com três etiquetas: o filme de qualidade; o
filme sobre questões sociais importantes que o discurso liberal da
academia costuma anualmente premiar; e, finalmente, o filme que, depois
de Blue Jasmine (2013) de Woody Allen, poderá vir a dar em anos consecutivos o prémio de melhor actriz a Blanchett.
Mas convenhamos, mais importante do que tudo isto é o gesto sobre o
ombro de Rooney Mara em que Haynes cita Lean. Ou o plano em que esta
surge enquadrada à noite com um candeeiro de rua antes de apanhar o taxi
(outra citação, neste caso de Sirk). Estes indícios mostram-nos que Carol não quer ser um filme bandeira de nada, sequela no feminino de Brokeback Mountain
(O Segredo de Brokeback Mountain, 2005). E chegamos ao neoclassicismo
no qual Carol é uma evocação de Katharine e Belivet de Audrey. Ambas
Hepburn. Chegamos ao verde e ao vermelho, cores deste “Christmas Carol”,
captadas pela imagem granulada da película super 16mm com que o filme
foi captado. Chegamos à banda sonora que alterna o piano e o violino
ternos de Carter Burwell e o jazz intimista de Billie Holiday e
Georgia Gibbs. E finalmente ficamos com os sorrisos subtis, entoações e
olhares de Blanchett que procuram sair de uma contenção da qual não
pode sair. Esse dito no não dito, a sugestão do toque, da cor e da
textura são os sinais de uma lava proibida num filme que retrata um
período em que o lesbianismo era, ou uma questão de moral, ou uma
questão de psicoterapia.
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