quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A fuga do estilo

Desde o Génesis que uma das dádivas que Deus propôs oferecer ao homem foi a possibilidade de gerar uma inúmera prol. Uma descendência tão farta como o número de estrelas, num remédio contra o fim da existência individual e estéril. A vontade de deixar descendência pode ser vista como um desejo de inscrição. Morremos mas queremos que a nossa semente perdure. Almejamos gravarmo-nos nas entranhas da terras, imiscuir-nos com as outras sementes sazonais da terra, tal como um cinzel modula a pedra ou o ferro. Desta última actividade de inscrição surge o estilo, como instrumento necessário à escrita suméria cuneiforme ou a outros sistemas anteriores à escrita. Mas o acto primeiro — mítico (mudo), mágico (circular) — de inscrição é aquele pelo qual Deus moldou a sua imagem em barro (em hebraico adamah), no qual insuflou o seu sopro e daí criou o homem (Adam). Esse mito mostra como o homem é o material espiritualizado que nasceu do "coito" entre a argila como material (a grande mãe) e o sopro-semente insuflado por Deus (o grande pai). Mas sobretudo mostra também a precedência do acto de inscrever sobre o de escrever, ou mais concretamente, sobre a sobrescrita. 

Todas estas ideias não deixam de ressoar hoje. Sobretudo quando a tendência decrescente da natalidade (já conseguimos contar as "estrelas" de cada família na sociedade ocidental) também pode ser colocada lado a lado com a evolução da escrita. Do cinzel, ao pincel e ao píxel, há todo um estilo que se reconfigura. E com ele a diminuição da importância da inscrição (física) como marca visível de um estilo. Como se a passagem do monumental ao documental, do talhar ao pintar sobre, nos dissesse também ela qualquer coisa sobre a menor necessidade de marcamos sobre a terra o nosso estilo. Porque se a inscrição é mágica, o escrever dilacera a imagem e busca o conceito para as linhas da "tapeçaria" que enformam os textos. Estes como obras a várias mãos, com a trama horizontal do autor e a trama vertical do leitor a cruzarem-se num ponto de tecitura variável.

A evicção do estilo do homem — como o de Abraão, a quem, já com 99 anos, Deus prometeu multiplicar a "descendência até ao infinito" —, parece vir a par com a mutação do estilo da escrita. Com o digital, a visualidade da escrita (que já havia abafado o auditivo) parece atingir a fase em que descarta as letras. A matematização descarta o processual, casual, ondulatório e estabelece perfis e diagramas para "analisar" e "conduzir" a sociedade. Mesmo os números decimais são abandonados em favor do que Flússer chama uma "primitivização do mundo dos numerais", através do sistema binário infantil. Neste sistema é cada vez mais difícil prever um estilo (da inscrição do homem como homem que age, mas também do homem que se multiplica) e cada vez mais fácil antever a reprodução (também humana) sob um modelo copy/paste, no qual Deus e a descendência de Abraão já não se distingam a não ser na sequência diferente de zeros e uns.

5 comentários:

  1. Não percebi nada. Andas nalgum curso de filosofia francesa?

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  2. Pois não percebes porque é uma associação sem pés nem cabeça. A ideia era relacionar o desejo de multiplicação do ser humano à mesma tarefa de inscrição que o escultor faz na pedra. Ou seja, tal como este grava elementos no material, assim também nós queremos, ao reproduzir-nos, inscrever a nossa "semente" na terra. E mais: se o estilo nasce etimologicamente do instrumento para gravar/inscrever no material duro, então esse desejo de multiplicar a nossa prol é uma marca do estilo do ser humano nessa "escrita" muito própria sobre o planeta. Ora, depois, ainda mais desmiolado, tentei ser. A passagem da inscrição à sobreescrição (escrita sobre o papel com o pincel e a caneta) e depois à escrita no digital (com a questão do código binário, sem letras) produz um problema de modificação do conceito de estilo. Que estilo é esse que se produziu com a civilização das letras e agora com os computadores? Era essa mutação/decadência do estilo que também pode ser associada a um processo em que cada vez menos nos preocupamos em reproduzir (marcar a terra). Essa baixa de natalidade no Ocidente como uma crise da "escrita" (e do estilo dessa escrita) do humano sobre a terra, era isso que tentava em última análise ligar. Mas não é para pensar muito, são delírios.

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  3. «se o estilo nasce etimologicamente do instrumento para gravar/inscrever no material duro»?

    A situação está gravíssima.

    As ideias não me interessam para nada - ainda vem para aí alguém apontar-te a máquina de escrever, ou a quebra de natalidade em épocas de escrita à pena e ficas com as calças na mão. E parece-me a mim que a questão do código binário está mal colocada.

    O estilo é tudo. Deus te livre deste. Mete esta misturada em português de gente e as coisas vão ao lugar por si. Eu que não posso com o cinema e venho aqui ler com prazer as tuas análises e leituras cinematográficas, não te admito esta imitação de sorbonne pantagruélica. É um censura justíssima.

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  4. Todo o sentido: já que desisti de escrever, vou deixar de inscrever (tb já só copicolava). Não pretendo descendência nem memória, e no entanto aqui estou, em paradoxo.
    Agradeço a epifania por contágio.

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  5. Obrigado João, isto foi um post em cima do joelho inspirado pela leitura de "A Escrita - Há Futuro para a Escrita?" de Vilém Flusser e umas passagens bíblicas. Pedro, não abandonei o cinema, nem nele quero ficar retido. Mas respondo-te por email. Abraço

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