Para mim não restam muitas dúvidas que quem subir cronologicamente, degrau a degrau, a carreira de Hitchcock chega a The 39 Steps, sua 19ª obra, e pensa: não, ele nunca fez um filme tão bom como este. Talvez se fique com dúvidas em relação a The Lodger, The Ring, ou, admito mesmo, à segunda metade de Murder!, com uma brilhante aparição de Esme Percy, a antecipar o Hans Beckert de M no ano seguinte. Mas em 39 Steps
tudo parece conjugar-se. O grande tema de Hitchcock — o homem inocente
que toda a gente julga culpado — com as cordas do suspense e da surpresa
a serem puxadas a bel prazer, surge complementado com a emoção do
romance. Quando Hannay vai para a Escócia há uma sucessão de sequências
exemplares dessa complementaridade. No comboio, o suspense de não ser
detectado pela polícia com o beijo a Pamela, sua posterior companheira
de fuga e de algemas. Como em The Lodger ou Number Seventeen
as algemas são o anel que força, o objecto que obriga à junção de
contrários, muitas vezes até descobrirem que não são tão contrários. O
último plano do filme mostra isso, a algema real que deu lugar à algema
emocional, que se torna evidente quando o par dá as mãos. Depois de se
escapar, a cena já em terras escocesas na noite em que, a caminho de
Alt-na-Shellach, pernoita na modesta casa de um agricultor. Aqui o
suspense continua com a chegada eminente da polícia, mas vai além com o flirt
entre Hannay e a esposa do dono da casa, mulher muito mais nova.
Terceira sequência: chegada a casa do Professor Jordan com dois momentos
seguidos de surpresa. Ele, que era suposto ser o homem que o iria
auxiliar a esclarecer a sua inocência em relação à morte de Annabella
Smith, é afinal o homem sem parte do dedo mendinho, o alemão responsável
por roubar os planos secretos britânicos. Jordan dispara sobre Hannay e,
segunda surpresa, já nas instalações da polícia percebemos que
sobreviveu, pois um livro de hinos religiosos no bolso do casaco
(pertencente ao agricultor e que a sua esposa lhe deu para fugir durante
a noite) aparou a bala. Na polícia não acreditam na história dele e
volta a ter de fugir, assim sempre. Ao contrário de North by Nortwest,
que tem semelhanças de argumento incríveis (por exemplo, a cena do
comício político é muito semelhante à do leilão no filme de 59) aqui
parece não haver espaço para a respiração. A respiração é dada pela amor
e humor da relação de Hannay com as mulheres: primeiro com a espia,
depois com a esposa do agricultor, e, finalmente, a única que não
acredita nele, aquela que ele vai ter de dominar e algemar, a personagem
de Madeleine Carroll.
39 Steps é mesmo uma
escada que se sobe emocionado e ela é um bom exemplo de movimento. O
filme termina com a revelação do segredo de Estado britânico mas isso
já não interessa. Os segredos ficam a meio, alguém tem de os memorizar mas não nós... São cenoura para fazer
correr os espectadores e personagens. Curioso ou não num filme onde as
emoções e motivos das personagens são concretos, o conteúdo desses mesmos motivos não interessa, é abstracto. Precisamente o
inverso de muitos filmes hoje feitos com mundos e fundos. Emocionalmente
inertes mas com um argumento super pormenorizado, com viagens no tempo,
saltos para dentro de sonhos, dimensões à la carte. Filmes muito
concretos, hiper-realistas, que fazem da emoção um mero detalhe
abstracto. Exactamente, o movimento inverso da obra prima de Hitchcock
que concretiza a emoção numa série de peripécias redondas e abstractas.
Não é por acaso que se costuma dizer que a felicidade não é a meta, é o
caminho. Esse caminho pode ser uma escada, um súbito amor, uma
inesperada luta pela sobrevivência...
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