O húngaro László Nemes, 39 anos, venceu o prémio especial do Júri e o prémio FIPRESCI no festival de Cannes no ano passado com esta sua primeira longa-metragem. Mais do que a questão de ser uma obra de estreia, o significado político deste prémio prende-se com a inversão de uma estratégia contemporânea com que a história das imagens, e em particular o cinema, vinha retratando o irretratável, figurando o infigurável: o Holocausto. Numa carta aberta de 25 páginas dirigida ao realizador, o teórico de arte Georges Didi-Huberman descreve o filme de Nemes como um “sair do negro”, um trazer para a luz um pedaço da história que habita como um “buraco negro no meio de nós”, como descreve o próprio realizador.
Mas em que consiste de facto este trazer à luz? Falemos então do dispositivo de Saul Fia (O Filho de Saul, 2015), que vindo antes da sua história, parece ser já uma primeira machadada no reino da moral das imagens. Se o tema do Holocausto, depois da abjecção de Rivette e da objecção de Adorno, parece toldar a hipótese da pura e total visibilidade sem mais, consagrando antes o tal reino do negro, do silêncio e do irrepresentável [expressão de Claude Lanzmann, realizador do monumento às vítimas das atrocidades da 2ª Guerra Mundial, Shoah (1985)], o filme de Nemes não teme usar a ficção para se colocar no centro do inferno: uma dia e meio em Outubro de 44, no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Em apenas 85 planos-sequência, câmara à mão (e sempre à altura do homem), o filme acompanha o judeu Saul Ausländer, membro dos Sondercommando (unidades de trabalho compostas por prisioneiros que se dedicavam à limpeza dos campos e sobretudo à eliminação dos cadáveres), numa tentativa desesperada para evitar que o corpo do seu filho seja queimado como os outros, procurando um rabino para um enterro próprio, com um mínimo ritual funerário. A câmara, como companheira de inferno, procura nunca ir além do que Saul vê e ouve. O realizador, fazendo uso de objectivas de 40 mm, reduz o campo do visível ao mínimo para que todo o horror permaneça na constante falta de profundidade de campo.
O primeiro plano do filme mostra bem do que será feita esta travessia. No início é o negro, claro, e um espaço com duas árvores. Ouvem-se os passarinhos, mas também alguém que cava na terra e um apito. A câmara está instável, como sempre vai estar, e algumas figuras vêm ao longe caminhando, indistintas, para nós. Saul chega até muito perto da câmara, é esse o limite da visibilidade clara, e vemos pela primeira vez o seu rosto inexpressivo e fechado. “Vamos”, diz-lhe um colega dos Sondercommando, cruz vermelha pintada nas costas do casaco. Este vamos é o mote para um constante percorrer labirintico, de um vivo que já se sente morto e que paradoxalmente vai querer “salvar” outro morto, o seu filho: salvá-lo do pó a que o querem reduzir, do pó que será lançado nas margens do rio Vistula.
A grande virtude do dispositivo montado por Nemes é a compreensão de que existe uma alternativa entre a pura visibilidade do horror (é o problema da esteticização, do show da morte como algo atraente e belo) e o puro silêncio do negro. Essa alternativa é o véu da descrição, função desempenhada pelas imagens desfocadas ao longe, uma falta de profundidade de campo no interior de tão profundos e atrozes campos. Esta solução intermédia, pelos pedaços de visibilidade que Saul Fia nos dá a ver, é esse espaço de sombra que ora nos mostra, ora nos sugere. Por isso, a falta de profundidade de campo é a maior personagem do filme, não só por estabelecer a distância correcta de um ponto de vista crítico e inovador para a experiência dos campos de concentração, mas também por trabalhar a dimensão sensorial da desorientação do seu protagonista. Saul vê coisas em fragmentos, é puxado, encurralado, está sempre a caminho de, sem ter tempo sequer para o desespero e o luto. São o táctil e o sonoro, mais do que o visível, as matérias primas de fabricação do terror.
Se as imagens são turvas e nem Saul nem nós sabemos para onde vamos (nessa indefinição, o rosto “morto” do poeta húngaro Géza Röhrig é chave) o som, pela sua nitidez, trabalha a nossa memória. O bater das portas dos fornos, os gemidos das pessoas a serem gaseadas, o crepitar do fogo, os gritos estridentes das ordens alemãs, os passos (ora apressados, ora desconjuntados), os sussurros de palavras contrabandeadas às escondidas, tudo compõe essa estadia no inferno, essa travessia operática com planos intermináveis, como se Nemes escrevesse com frases curtas (cada plano longo, várias frases curtas, como solavancos) e nunca as terminasse, como se filmasse o medo, a desorientação, com a incredulidade das reticências. Estadia no inferno que é o périplo de Saul, mítico, circular, com a obsessão como motor, inspirado na filha de Édipo na “Antígona” de Sófocles que também tenta enterrar o irmão, ou mesmo na procura de Orfeu que desce aos infernos pela sua Eurídice.
Pela perturbadora experiência que é ver Saul Fia pode dizer-se que um filme destes não se aconselha. Mas muito pior do que aconselhá-lo é não o fazer, pois é importante testemunhar como o cinema inventa mecanismos para suportar os traumas do passado. Se urge ver este filme com o seu trajecto sem heróis, impuro, sujo, sem redenção ou penas spielberguianas, também se diga outra coisa. Se alguma vez o cinema desafiou a ideia da arquitectura das suas salas como espaço de culto religioso — no qual entramos num altar de separação para olhar para cima, para a tela, onde um mundo irreal desfila antes nós — então este é o filme para tal desafio. Não existindo um espaço de respiração devocional para o espectador, Saul Fia faz desejar uma sala de cinema onde em vez de olhar para cima pudéssemos olhar para baixo, ou pelo menos de frente. Não por sinal de respeito mas por virtude de uma luta corpo a corpo com as nossas acções, com a nossa história.