sábado, 24 de outubro de 2015

Virtude fácil, imagens imediatas

Plano subjectivo de Easy Virtue visto através do monóculo de um juiz.

No adágio do "nem tudo é o que parece", Alfred Hitchcock tinha utilizado o teatro como uma "imagem" duplificada da vida real, com revelação pelo zoom out ou pelo establishing shot à posteriori do plano aproximado. Lembro por exemplo, a cena em Downhill em que vemos Novello vestido com um smoking e só depois percebemos que ele está a encarnar o papel de um criado de mesa numa peça de teatro. Aparte a circularidade sem saída que culpa uma sociedade puritana pela forma como vê a questão do adultério e da virtude feminina, a peça de Noel Coward, e sobretudo o filme que a adapta, Easy Virtue, não faz outra coisa senão trabalhar sobre essa relação entre o que parece e o que é. 

Larita Filton é a wrong woman. Falsa culpada e condenada por adultério devido a uma proximidade a um pintor que, apaixonado por ela e não a podendo ter, se suicida, deixando-lhe uma soma considerável. O divórcio com o marido consuma-se em tribunal, mas, faça ela o que fizer, a "letra escarlate" da virtude fácil ameaça persegui-la como uma maldição. Hitchcock percebeu que ao contar a história de uma personagem que é uma coisa mas que parece outra, que possuía uma imagem exterior e societária diversa, podia/devia transfigurar isso numa co-relação visual. Não é por acaso que o pintor que pinta o retrato de Isabel Jeans se apaixona por ela. E, ao contrário, a sociedade apenas a veja com filtros ópticos - o monóculo do juiz num célebre e ousado POV para a época, mas também as máquinas fotográficas que disparam objectivamente sobre ela -, e que, por isso, por essa imagem precisamente mediada, sempre enxergue apenas um simulacro de quem ela verdadeiramente é. 

Hitchcock dizia em jeito de brincadeira que um dos piores intertítulos que jamais escrevera foi o do final do filme. Quando Jean, num segundo processo de divórcio, sai desoladíssima para a rua diz aos fotógrafos, que queriam novamente tirar-lhe o retrato para continuarem o seu escândalo nas capas de jornal: Shoot. There's nothing left to kill. Sendo piroso é certo, o que esta última tirada mostra é que Easy Virtue também reconhece, ainda que implicitamente, que a carne e osso, "atacada" pela imagem mecânica perdia precisamente o seu espaço de ambiguidade, a sua razão de ser, e fabricava uma realidade alternativa, apagando a mulher inicial e real. Esse apagamento da ambiguidade também Hitchcock o sente com a própria câmara e por isso faz durar muitas das cenas do filme além da acção decisiva, como que gritando pelo som e pela palavra, para construir uma maior complexidade às suas personagens. Complexidade puxada até ao seu limite quando por exemplo Larita é uma mulher de risos e cigarros intermináveis e a mulher que devia ter casado com John Whittaker (o segundo homem com quem casa e que também a rejeita) é o expoente da serenidade e da "verdadeira" virtude.

Hitch quis esconder o verdadeiro da sua câmara, atrás de uma direcção de actores à primeira vista enganadora pois ele sabe que, enquanto souber gerir a verdade, tem os espectadores presos pela fetichista trela do suspense e da revelação.

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